Junto com a pandemia global do novo coronavírus, vieram as mudanças na dinâmica no universo do trabalho, que em muitos casos passou de presencial para virtual. Essa realidade é o caso de Maria Souza*, 21 anos, que é professora em uma unidade particular de ensino infantil na cidade do Recife, capital de Pernambuco. O que ela não esperava é que, mesmo em home office, episódios de assédio moral sofridos desde a época de estagiária também iriam ser “adaptados” para a modalidade on-line.
O relato de Maria reflete situações que outros trabalhadores passam frente a pandemia da Covid-19, que por sua vez, agravam ainda mais o terror psicológico acentuados pela crise. Desde os 19 anos que ela trabalha na escola, na qual sofre diversos ataques caracterizados como assédio moral - quando funcionários são submetidos a repetitivas ações de violência verbais e psicológicas em ambiente de trabalho.
“Ele [chefe] praticamente quer mandar em nossas vidas e comportamentos, dentro ou fora da escola. Agora no home office, ele fica o tempo todo ligando, cobrando tipo cinco atividades adiantadas e que a gente sempre esteja disponível no grupo da escola”, relata a vítima.
Neste período com a crise sanitária, o contrato da professora passou por alterações, segundo determinado pela Medida Provisória nº 936/2020, que autoriza redução de salário, readequação de carga horária e até mesmo suspensão temporária de atividades. Com isso, Maria, que antes atuava presencialmente de segunda a sexta-feira no turno da manhã, agora realiza as atividades profissionais de casa, da forma, on-line, em mesma carga horária e turno, mas com salário reduzido. Mesmo nessas condições, a cobrança excessiva por parte do patrão só aumentou.
“Depois que combinou isso da gente [professores] ficar junto dos pais em casa no suporte, ele passou a ser tipo mais autoritário. Ele fala lá [no grupo do WhatsApp] que a gente tem que à noite dar suporte aos pais para fazer atividade da criança. Mas estamos repassando as atividade durante o dia, momento em que estamos disponíveis para os pais”, explicou Maria ao LeiaJá.
De acordo com o advogado Paulo Rodrigo, o assédio moral, também conhecido como "terror psicológico", é um tema comum no âmbito do direito trabalhista, e que continua a assombrar vítimas tanto na forma presencial de exercer as funções quanto no no método remoto.
“Essa conduta [o assédio moral] pode se dar através de cobranças excessivas; perseguições virtuais; invasão na esfera pessoal, familiar da vítima; ameaças de desligamento da empresa, em virtude do atual estado de calamidade pública; por canais de comunicação como telefone, mensagens via aplicativos, reuniões virtuais, e-mails, com principal intuito de desequilibrar a vítima”, explica o jurista.
Paulo também ressalta que o assédio moral pode acontecer em duas formas, sendo "vertical", quando feito pelo empregador, ou "horizontal", quando ocorre entre os funcionários. Ele destaca, ainda, que essas situações podem ser configuradas também na forma virtual, a partir da invasão da privacidade do trabalhador.
No caso relatado por Maria, o assédio é realizado na forma vertical, na qual o uso das redes sociais torna-se a principal ferramenta de perseguição utilizada pelo assediador. A vítima fala que não possui muitas alternativas para se proteger, e que em muitos momentos precisa “desaparecer” das plataformas digitais, fora do horário de expediente, para que possa realizar as atividades cotidianas da vida particular.
“Eu tenho que fazer as atividades em um dia e entregar no outro, por exemplo, na terça para entregar na quarta. Daí quando dá 8 horas da manhã, a gente tá ligando e fazendo as atividades e ele já anuncia que a "escola está aberta" e faz diversas ligações durante todo dia”, relata a jovem. “Onde eu trabalho não tem setor de Recursos Humanos (RH) e para me proteger eu tenho tentado ignorar, sumo das redes sociais”, desabafa a professora.
Em entrevista ao LeiaJá, a consultora de RH e psicóloga Lúcia Araújo analisa que é possível notar o assédio em atitudes em que os trabalhadores sejam constrangidos ou humilhados, sendo colocados em situações que afetam diretamente sua integridade e dignidade.
“A violência praticada na relação de trabalho, tanto no ambiente da empresa ou no home office, são essas situações em que coloca o trabalhador em um lugar de vulnerabilidade. Situações repetitivas provocando diminuição da autoestima e causando danos à saúde física e mental”, elucida a psicóloga.
Lúcia enfatiza que com o trabalho home office episódios como esses, explanados pela professora vítima de assédio moral, podem ser mais frequentes devido a vulnerabilidade ocasionada pela situação. Por vezes, induzindo ao assediado a "aceitar" essa condição, possibilitada pelo medo, do mesmo jeito que a Maria se assujeita.
“Com o trabalho home office essa predisposição aumenta porque o trabalhador, neste momento de incertezas quanto a manutenção de seu emprego, sente-se inseguro quanto ao que vem pela frente e muitos se submetem aos maus tratos que podem vir de várias formas, como falta de recursos para se trabalhar, excesso de carga horária, metas difíceis de serem atingidas, cobranças excessivas, foco nos pontos fracos do trabalhador ao invés de fortalecer seus pontos fortes, entre tantos outros fatores”, explica Araújo.
A psicóloga ainda aponta que um setor de Gestão de Pessoas, ou como é mais conhecido, Recursos Humanos, tem um papel crucial para combater comportamentos abusivos no ambiente de trabalho, sobretudo com advento da pandemia global.
“O RH tem como desafio identificar as situações de insatisfação dos funcionários através de pesquisa interna do clima em cada departamento, inclusive no trabalho home office, para identificar possíveis situações e agir na prevenção da prática de assédio moral”, disse.
Causas do assédio em tempos pandêmicos
É comum a instabilidade emocional neste período, entre doses de incertezas e desolamento, profissionais podem chegar às últimas consequências, pedindo demissão. Foi o que aconteceu entre alguns colegas da professora Maria, que assim como ela, foram acusados de mentir sobre as etapas de execução e envio das atividades para os alunos de suas turmas.
“Eu acho que tem assédio moral pelo fato dele ser bastante grosso, autoritário, sem regularidade na forma de acompanhar o trabalho. Inclusive uma professora, colega de trabalho, pediu demissão durante a pandemia. Eu só não joguei tudo pro alto ainda por que preciso”, enfatizou a vítima.
Por causa dessa conduta do chefe, Maria passou a sentir com mais força os efeitos trazidos pela pandemia. Sente que está sobrecarregada e ansiosa, consequentemente mais irritada e intimidada, visto toda a situação em que está inserida.
Nesse contexto, em um momento delicado para essas pessoas que lidam com isolamento social, contaminação pelo coronavírus, adoecimento de parentes e amigos, esses sentimentos são potencializados por outras preocupações, como instabilidade profissional, medo de ser demitido, preocupação em manter a empregabilidade e vida financeira.
“Quem trabalha em home office, manter uma rotina de trabalho é bem difícil. Quem já tinha predisposição a ansiedade, depressão, transtornos obsessivos, com a pandemia a tendência é intensificar os sintomas. A pressão do trabalho por resultados, sem levar em consideração os aspectos emocionais dentro do contexto que o mundo está vivendo, acarreta prejuízos à saúde do trabalhador que pode desenvolver o Estresse Pós Traumático (EPT)”, explica a psicóloga Lúcia Araújo.
Lúcia também explica que, neste período, que esses traumas podem refletir na entrega do trabalho realizado pelo funcionário, estendendo-se a danos que podem ser permanentes a vida da pessoas, impactando de forma negativa. “Nosso cérebro foi criado para trabalhar de forma organizada, a fazer uma coisa a cada vez, por mais que o homem tenha se adaptado às demandas do trabalho multifuncional, nosso cérebro, comprovado pela neurociência, não funciona de forma criativa sob pressão, imagina tendo que lidar também em situação de violência nas relações de trabalho?”, questiona.
“Chega um determinado momento em que o corpo gera os sintomas relacionados ao estresse como forma de dizer para você que algo não vai bem, que é preciso parar para repensar sua rotina, sua forma de interagir e lidar com as dificuldades da vida pessoal e profissional”, conclui a psicóloga.
Alternativas para se proteger
Da mesma forma que a empresa em que Maria trabalha não tem um setor que cuide de assuntos relacionados ao clima organizacional, ou trate questões como de assédio moral ocorridos, outros milhares profissionais de pequeno ou micro empresas são constantemente inseridos em circunstâncias desfavoráveis.
Em uma visão geral, sobre os casos de assédio moral via home office, o advogado trabalhista Paulo Rodrigo fala sobre a importância da empatia - capacidade de se colocar no lugar do outro - que empregadores e gestores devem ter para com seus funcionários em atividades remotas.
“Estamos presenciando uma situação jamais vista. Um momento em que a empatia é primordial para a excelente execução das atividades contratuais. Se colocar no lugar do outro para saber os desafios e dificuldades encontradas é essencial. Se houver o afastamento do funcionário por questões de abalo à sua saúde mental, a empresa pode ter maiores dificuldades na concretização das suas necessidades e acabar prejudicando seu negócio”, explica.
Perguntado sobre quais caminhos os trabalhadores em home office podem utilizar para se proteger dessas situações, o advogado orienta que “caso o empregado sinta que se encontra diante de situações em que o assédio moral se configura de forma virtual, com invasão à sua privacidade, ele pode realizar mecanismos de proteção para comprovação dos respectivos danos sofridos pelo agente assediador, como, por exemplo, realizar a gravação integral das conversas, ligações, vídeos; arquivar e-mails com conteúdos degradantes, fotos, dentre outros”.
Munido dessas informações, o profissional pode denunciar na forma legal os abusos sofridos dentro da empresa, dando entrada em processo judicial, assim como em outros processos de assédio sofridos em local de trabalho. Para trabalhadores de empresas com setor de Gestão de Pessoas a recomendação, primeiramente, é formalizar denúncia através deste recurso.
O advogado ainda pontua que as empresas devem se adequar às novas necessidades do mercado, acordando previamente a forma que irão se comunicar com o funcionário, de preferência estabelecendo regras e limites no contrato de trabalho home office, que é de suma importância, para não haver erro na interpretação e acabar gerando equívocos entre os envolvidos, e que, por sua vez, respeitem os limites das atribuições reservadas a cada profissional. Paulo Rodrigo ressalta, ainda, que a comunicação é essencial para entender as necessidades de ambos.
Segundo Lúcia, é preciso que haja iniciativa da empresa para se tornar bem quista aos olhos dos colaboradores. “Uma empresa que valoriza seus funcionários com boas práticas de convivência entre seus colaboradores, com políticas de combate ao assédio, com canais de ouvidoria para denúncias, com palestras e reuniões sobre o assunto e como ele pode se desencadear dentro e fora do ambiente de trabalho, é uma empresa preocupada com o bem estar da saúde mental de seus trabalhadores”, diz.
Ela ainda recomenda que o “trabalhador que está sob essa condição, sentido perseguido, humilhado na relação com líder ou colega de trabalho, deve se abrir com alguém que confie, levar a situação ao gestor de recursos humanos, que saberá como tratar a situação sem colocá-lo em exposição. A atitude assertiva ainda é o diálogo aberto e franco para tentar resolver o conflito”, disse psicóloga ao LeiaJá.
“A prática da Comunicação Não Violenta (CNV) é um processo desenvolvido pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, usado mundialmente para promover a paz e resolver conflitos, ajuda as pessoas a entrarem em contato com suas reais necessidades e aprenderem a fazer um pedido sem magoar sem diminuir o interlocutor, se relacionando de forma assertiva e respeitosa”, completa.