Suzana Varjão

A mãe (mais um episódio da série "retratos de uma família brasileira")

— Você pode ser o que quiser!

As palavras ressurgem, sempre que uma barreira qualquer se interpõe entre ela e um objetivo. E teve que superar muitas, desde os primeiros passos fora do círculo protegido da família — uma das mais marcantes, quando teve que mudar de estado, de cidade, de colégio, e ganhou o apelido de girafa.

Chegava em casa chateada, ia direto pro quarto, não tinha vontade de comer, de estudar, de conversar... A mãe estranhava, perguntava o que estava acontecendo, ela se fechava mais ainda, tinha vergonha de dizer que a “princesinha da mamãe” era alvo de chacota dos novos colegas.

No aniversário, não quis festa. Ganhou um game de presente, mas — infeliz acaso — o papel da embalagem era cheio de... girafas. Caiu no choro, acabou contando sobre as zombarias, não entendia por que era tão diferente dos demais. A mãe ponderou que diferença não significava inferioridade, que às vezes era até vantagem, como o caso da girafa, por exemplo.

Demorou a acreditar que o que parecia fraqueza era força, que a altura e o pescoço longo eram resultado “de resistência pacífica, de luta vitoriosa pela sobrevivência”. Mas — outra coincidência — na semana seguinte à conversa, a professora passou como tarefa de casa uma pesquisa sobre animais silvestres, para ser compartilhada em sala.

A mãe sugeriu o que lhe pareceu ideia de jerico: que falasse sobre as girafas! E lhe contou histórias sobre as grandonas, comparou com as de outros bichos, indicou sites, séries de TV... O espanto foi dando lugar à curiosidade, e o que a mãe lhe havia dito naquele dia (e que tinha entrado por um ouvido e saído pelo outro) acabou fazendo sentido.

Gostou particularmente dos detalhes sobre o coração das girafas — maior e mais forte que o dos homens; e das vantagens de serem altas, de terem aquele pescoço grande: enxergar ao longe, para além de horizontes restritos, avistar predadores com boa margem de antecedência, tocar com facilidade o que muitos não podiam alcançar.

No dia da apresentação, a professora mal conseguiu conter a balbúrdia da sala. Teve vontade de sair correndo, mas atendeu ao chamado da mestra e se pôs a falar. Um risinho aqui, outro ali, foi sentindo uma queimação nas bochechas, o tom de voz foi subindo, encerrou a história da girafa, emendou com outra — sobre as hienas.

As palavras foram jorrando, se não sabiam, ficassem sabendo que elas riem, só que não de alegria, mas para descarregar frustrações, e as que mais riem são as menos poderosas dos grupos, vivem mendigando restos de comida e atenção, a face serena da mãe veio à cabeça, foi suavizando, mesmo seres que parecem infames, ou fracos, têm virtudes, todos têm...

Foi a primeira vez que escutou o som do silêncio. E naquele dia, olhos cravados nos olhos serenos da mãe, prometeu nunca recuar diante de ataques contra suas subjetividades ou convicções — o que cumpriu como pode, porque nem sempre seus atributos de girafa a ajudaram a detectar abusos em tempo hábil.

Em alguns casos, a ficha só caiu depois de anos, quando leituras e conversas fizeram com que rastros aparentemente dissociados apontassem para uma mesma direção, como os conselhos para que “domasse” o cabelo; a frequente confusão com a filha da zeladora do prédio (“são tão parecidas!”); as reticências mal contidas ante os planos anunciados para o futuro.

Mas havia em casa uma força em sentido contrário, que destituía os limites impostos aos seus sonhos, estimulava saltos, injetava ousadia, autoconfiança, destemor. Sempre com voz mansa, mas firme, assemelhava-se à própria girafa, que, como fazia questão de frisar, comunica-se com o coração.

As armaduras da maturidade vieram desse ambiente. Aprendeu a não se render diante de verdades mundanas, apregoadas como sagradas — portanto, únicas, indiscutíveis, imutáveis. Tornou-se, como desejado e orientado, pessoa honrada e justa, que se não se deixa devorar, tampouco devora.

Por isso, não compreende o porquê da negação de agora. Não entende por que essa diferença seria tão diferente das outras, por que colidiria com sua religiosidade... Vontade de sentar a mãe no colo e dizer que tinha aprendido outras coisas além daquelas que ela ensinara — por exemplo, que religiões são criações humanas, esforços de racionalização da espiritualidade.

E os homens são falhos, não são?

Entende o medo que os pais têm do sofrimento imposto aos filhos que não se enquadram em padrões hegemônicos. Mas mães como a sua sabem que a vida é plena de diferenças que machucam (elas mesmas não tiveram que enfrentar várias?). O que talvez ignorem é que para esses filhos, a dor maior é a não aceitação de seus pais.

Se por uma dessas coincidências da vida a mãe recebesse alguma encomenda, e a embalagem tivesse desenhos de hienas, lhe pediria pra não chorar, a chamaria pra uma prosa, e explicaria que aprendera a se defender delas — da parte ruim delas; lhe diria que se convencera de que pode ser o que quiser, e lhe perguntaria:

— E você, mãe, cadê o seu pescoço de girafa?

(porque hoje é domingo...)