Cassiano Antico

Entre o paraíso das crianças e o pântano onde adultos rastejam

Nada  justifica o que está aí.


Foto: pxhere/Creative Commons

Valentina dormia no meu colo enquanto o médico fazia o ultrassom na barriga da Ju. Eu já havia subido as escadas da clínica degrau por degrau para não acordá-la. Nunca imaginei zelar por algo ou alguém dessa maneira.

Fui meio que mancando, em câmera lenta, que nem um retardado, um sequelado quase feliz, porque a perninha direita estava esticada e a outra me abraçava. Ela tinha 1 ano e meio de vida. Carregava nossa primeira filha. Ela parecia estar tão confortável. Então tudo bem. Eu mal respirava para não incomodar.

Cansei de dar importância demais pra mim nessa vida. Dá até vergonha de falar sobre ou de me lembrar. Na sala, o médico perguntou se gostaríamos de saber o sexo do bebê. "Sim, sim" -  falei junto com minha mulher. "É uma menina. Parabéns!" - disse ele (não tão maquinalmente como imaginei que seria). Alguém, além daquele jaleco branco e cabelos com gel vivia naquele corpo. E vibrei com o avental de óculos, sem me movimentar muito, ou quase nada. Com um olhar pude chegar mais perto da minha mulher, e até encostar nela. Vi a carinha de nossa segunda filha lá, na tela do computador. Tão frágil, tão pequena...  Isadora! Isso tem uns 3 anos e uns quebrados.

Dizem que o que procuramos é um sentido para a vida. Penso que o que procuramos são experiências que nos façam sentir vivos. A paternidade foi a experiência mais pungente, mais potente que pude experimentar. Mais que as drogas! Ou que as paixões avassaladoras. Ou que a abstinência das drogas e todo o sofrimento do mundo para me libertar delas. Porque nunca admiti ser subjugado - muito menos por uma substância química que passou a tomar conta de tudo -, da casa inteira e não me deixava sentar nem na beirinha do meu próprio sofá. Uma substância que passou a determinar como eu iria morrer.

Senti em mim o recuo do homem à fera. Disse não! Trouxe a responsabilidade pra mim. Tive que sair na porrada com alguns demônios, demônios horríveis que não são vistos a olho nu, monstros interiores. Tive que negociar com dragões, foi imprescindível. Mas consegui. E tenho conseguido há mais de 2 décadas.

O fato de escrever nessa coluna "Papo de Pai", semanalmente, é uma espécie de bênção. Poder transitar entre dois mundos. Entre dois astros que se olham a certa distância, acenam um pro outro, porém mal se reconhecem. O universo de minhas filhas nasce a cada momento para a "eterna novidade do mundo".

Porque as crianças têm o dom de provar o fim das sensações. Escapam a elas os frágeis e intangíveis contornos das coisas dolorosas. Elas veem o fato, mas pouca coisa ao redor. Eu posso me lembrar vagamente. Já fui criança, né?

Tal limitação serve como proteção para emoções complexas. E esse ambiente turvo, essa água barrenta, esse pântano cheio de animais devoradores em que não se enxerga um palmo na frente do nariz: só será "compreendido" mais tarde. Ou, talvez, nunca. Confesso que até hoje não entendi porra nenhuma.

 
Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro. Não acredito que eu exista por detrás de mim
(Alberto Caeiro/Fernando Pessoa)

A não ser a constatação destes dois mundos, dois ambientes distintos. Um alegre, livre, que dança. E outro asfixiante, repleto de seres rastejantes. As crianças não aprendem com palavras, mas com exemplos. Elas não seguem seus belos lábios e nem seus sermões de Padre Vieira, mas seus passos mancos ou atléticos. E no mundo dos répteis não há criança que não cresça para ser humilhada. Olhe pra você ver.

Nada  justifica o que está aí. Nenhum motivo explica essa guerra. Estamos em guerra, sendo atacados. Um amigo preso, algemado, só porque cantava na rua. Artistas negros apanhando na Praça Roosevelt, em São Paulo, por causa da cor da pele - uma suástica desenhada no meio da praça. 9 jovens mortos, pisoteados num baile funk. Vidas infantis sendo ceifadas por armas oficiais. Um avô abraçado ao neto - em plena luz do dia -, e ambos sendo surrados por homofóbicos furiosos. Coisa corriqueira.

E penso no romance "O Homem que Ri", de Victor Hugo. E visualizo o personagem Gwynplaine. Mutilado pelos comprachios, ainda criança, tendo os lábios rasgados de forma a ficar "rindo" eternamente. Para se tornar uma aberração, fazer o povo rir. Atração de circo!

E o garoto sofre por todas as dores do mundo. Sente-se profundamente machucado pelas feridas expostas através dos olhos das pessoas. Pela fome estampada na cara das crianças. Pela solidão dos velhos. Pelo ódio que os humanos carregam no peito. Por esse mundo ser tão desigual e bélico. E é esse menino bom que vai salvar uma bebezinha cega da morte na nevasca enquanto ele próprio está quase morto.

E tem esse trecho no livro: "O que poderíamos fazer por esse povo? Algumas vezes ficava tão absorto que dizia isso em voz alta. Ah, se eu fosse poderoso, como ajudaria esses infelizes! Mas eu sou um átomo. O que posso fazer? Nada. Enganava-se. Fazia muito pelos miseráveis. Ele os fazia rir. E, como já dissemos, fazer rir, é fazer esquecer. Que benfeitor na terra é melhor que um distribuidor de esquecimentos?"