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Padê de Exu abre os caminhos até a Colina Sagrada na Festa do Bonfim

Filhos de Gandhy levaram o ijexá

Foto: Leiamais.ba
O Gandhy se prepara para o Padê de Exu
O Gandhy se prepara para o Padê de Exu

Leiamais.ba
Cobertura da Lavagem do Bonfim:
Doris Pinheiro, Monalisa Leal, Rosana Andrade, Felipe Belmonte, Antonio Muniz, Roberto Aguiar, Djair Sant'Anna, Gina Marocci, Alberto Oliveira

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Os arredores da Igreja da Conceição da Praia, na Cidade Baixa, em Salvador, estavam cheios de pessoas vestindo branco, quando o afoxé Filhos de Gandhy pediram permissão ao orixá Exu para que se abrissem os caminhos até a Colina Sagrada, onde se ergue a Igreja do Senhor do Bonfim.

Eram 7h55 minutos desta quinta-feira (17/1) e se iniciava no Pelourinho a cerimônia do Padê (ou Ipadê) de Exu, com a oferenda de alimentos e bebidas (cachaça, vinho, champanhe, farofa branca e de dendê), além de velas e do acaçá (bolinho afro-baiano feito de farinha de arroz ou de milho, cozido em ponto de gelatina e envolvido, ainda quente, em folhas de bananeira).

O objetivo é o de acalmar o lado brincalhão de Exu e o de pedir que ele interceda pela boa vontade dos orixás.


O padê de Exu - Foto: Leiamais.ba


O Gandhy inicia o cortejo ao Bonfim - Foto: Leiamais.ba

Lavagem de Corpo e Alma

Na Cidade Baixa, uma multidão vestida de branco e azul acompanhou a “Lavagem de Corpo e Alma”, na manhã desta quinta-feira. O cortejo abriu a maior festa popular da Bahia.

A imagem do Senhor do Bonfim foi conduzida pelo padre Edson Menezes, pároco da Brasílica Nossa Senhora da Conceição da Praia. 

A “Lavagem de Corpo e Alma” acontece desde 2014 e tem por objetivo separar os católicos dos blocos organizados por partidos políticos e da folia.

Desde 2018 a “Lavagem de Corpo e Alma” é animada pela filarmônica Orquestra de Frevos e Dobrados, composta por 60 músicos e conduzida pelo maestro Fred Dantas.

“Vamos tocar músicas tradicionais e atuais da Igreja Católica e, também, músicas populares que são parte da festa”, explica o maestro.

A professor Deise Oliveira acompanha a “Lavagem de Corpo” desde a primeira edição. “Um bloco católico dentro da Lavagem do Bonfim, com canções tradicionais e animado por uma filarmônica. Um ambiente alegre e de fé. Estou feliz e agradeço ao Senhor do Bonfim por estar aqui mais um ano”, disse.


A imagem de Nossa Senhora da Conceição da Praia - Fotos: Leiamais.ba

As muitas versões da Lavagem do Bonfim

Aponta-se como 1773 o ano em que a festa litúrgica do Bonfim passou a ser celebrada pela igreja e que o templo passou a ser preparado para as celebrações. Há notícias de que também neste ano pode ter sido iniciada a tradição da lavagem da Igreja, quando os integrantes da Irmandade dos Devotos mandavam os escravos lavar o templo. Mas não era uma cerimônia pública, nem mesmo da igreja.

Informações de estudiosos marcam o ano de 1804 como o da primeira lavagem oficial da igreja do Bonfim. Se sabe também que como a devoção era forte dentro da sociedade abastada da época, escravos eram enviados às quintas para lavar o templo para a missa das sextas.

No século seguinte à construção da igreja, portanto meados do século XIX, a festa já era grande em fervor popular e novamente se volta a ter informações de que foi instituída a lavagem oficial da igreja.

Mas também circulam notícias de que ela começou com um pedido singelo de um pároco a algumas pessoas para que a casa do senhor estivesse limpa para a missa solene do domingo.

Outra explicação bem simples é a de que a lavagem começou quando um devoto prometeu que, escapando ileso da guerra do Paraguai (1864 – 1870) lavaria sozinho a igreja do Bonfim. Alcançada a graça, ele teria ido cumprir a promessa o que motivou a curiosidade e algumas pessoas presentes passaram a ajudar e daí teria nascido o costume.

Segundo Mariely de Santana (2009), no início, a água da lavagem era retirada da fonte natural da encosta da colina. Com o crescimento da devoção, muitos romeiros chegavam antes, na quinta-feira, para participar da lavagem, e traziam vassouras, potes e barris.

Com o tempo, as pessoas da cidade, principalmente os aguadeiros, em sua maioria negros, passaram a levar pipas cheias de água ao Bonfim em romaria.

Eram levadas em carroças enfeitadas com ramagens de pitanga. Eles partiam da região da Conceição da Praia e de proximidades da Jequitaia e muita gente os acompanhava como uma verdadeira procissão.

As negras de ganho, e as esposas dos aguadeiros, os acompanhavam levando tabuleiros com quitutes. O cortejo era acompanhado pelos músicos de barbeiro.

Idas e vindas – A Lavagem do Bonfim, como cerimônia pública, teve muitos altos e baixos, momentos apoteóticos e de total proibição. Em 1889 o Brasil mudou de regime de governo, do Império para a República e a Bahia entrou inteira em estado de sítio. Claro, em 1890 não teve lavagem.

Antes disso, em 1837, o arcebispo Dom Romualdo Antônio de Seixas, já havia feito duras críticas à festa, editando uma portaria na data, revela o publicitário e pesquisador Nelson Cadena em seu blog.

Cadena segue contando que em 1856 o Jornal da Bahia alertava quanto ao que considerava uma manifestação pagã: “Ontem era dia de Lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim, para sua festa que celebra-se o domingo próximo, e como sempre houve no templo atos de desrespeito capaz de fazer estremecer um herático”.

E que em 1860 o Imperador da Áustria, o Principe Maximiliano descreveu a Lavagem do Bonfim no seu diário de viagem como “louca bacanal”. Segundo ele, Xavier Marques, o ilustre escritor, descreveu a Lavagem na década de 20 (já no século XX) como “festa de água e álcool, aquele enorme disparate de benditos e chulas de rezas e gargalhadas, de gestos contritos e bamboleios impúdicos. A Vênus lá exibia as suas opulências carnais e os seus rebolados”. Genial não é mesmo?

Em 1930 há notícias de que as autoridades eclesiásticas abriram mão para as baianas e o povo que, carregando potes de água da fonte da Baixada do Bonfim lavaram toda a igreja preparando-a para a festa.

A lavagem da igreja foi proibida em 1940 com a chegada a Salvador dos missionários Redentoristas. Apenas o interior da igreja foi lavado.

Em 1943, em meio à Segunda Guerra Mundial, por causa da vitória das tropas brasileiras na Itália, a lavagem ganhou uma força especial. Milhares de pessoas, como não se tinha visto antes, participaram da procissão levando ao Senhor do Bonfim uma grande vela de dois metros, ornamentada com flores naturais, para ser colocada aos seus pés e acesa em solene Te-Deum. A vela foi benta na igreja da Conceição da Praia e levada por baianas.


Festa do Bonfim em 1950

Mas o espírito profano e a religiosidade novamente entraram em choque em 1949 e a lavagem voltou a ser proibida. A festa só voltou a acontecer em 1953 com a lavagem simbólica das escadarias.

Nas décadas de 1960 e 1970 a festa ganhou nova força popular por causa da participação de artistas e intelectuais como Vinicius de Moraes e Caetano Veloso. Os políticos também começaram a tornar sua presença mais marcante.

De lá para cá, com ou sem trios elétricos, com ou sem carroças puxadas pelos pobres jeguinhos e burros, a festa se mantém vigorosa, a mais importante do ciclo de festas populares da Bahia.

Aquela que espalha pelos quilômetros que separam a Conceição da Praia do Alto do Bonfim, gente vestida de branco que mistura dentro de si esse espírito sacro-profano que só se entende como funciona por aqui quando se mergulha sem pensar muito, mas abrindo o coração e o sorriso, olhando para o céu azul e pedindo a benção. Afinal, essa aqui é a terra abençoada pelo filho de Deus, o Senhor do Bonfim da Bahia.