Um dos grandes desafios do poder público em Salvador, na segunda metade do século XIX, era ligar regiões mais distantes da cidade, como Rio Vermelho, Brotas, Barra e a Península de Itapagipe, por exemplo. Não havia ligação entre as regiões à beira-mar, portanto o trajeto acontecia pelas cumeadas, ou seja, pelas partes mais altas, ou por mar.
O centro da cidade alta, que abrigava toda a parte administrativa da cidade e da província (a Bahia será um estado federado na República), funcionava entre a Praça Municipal e o Campo Grande.
Os mapas da época pouco informavam sobre as zonas consideradas subúrbios e o próprio mapa de 1894, de Adolfo Morales de los Rios, também representa a cidade com o foco no centro antigo, contudo, a cidade já havia se expandido para além dele, com a ocupação mesmo que rarefeita da orla marítima ao norte e ao sul, e do miolo, subdividido em fazendas produtoras de laranja, outras frutas e gado de pequeno porte.
Já falamos sobre a importância da Baixa dos Sapateiros (em azul, no mapa abaixo) como elemento de ligação entre o que chamamos de primeira cumeada e a segunda cumeada, que abriga as regiões da Saúde, da Palma, do Desterro e de Sant’Ana, mas, também, para as áreas de expansão nos vales de vários riachos e rios que atravessam o território municipal.
Em um mapa da última década do século XIX, vemos a grande importância dos conventos mosteiros e igrejas de irmandades (em vermelho) na ocupação e urbanização de vários trechos da cidade.
?
Mapa de Salvador, c. 1890 (Arquivo Nacional).
Na cidade alta, quatro eixos eram importantes trechos estruturantes desde o século XVIII (em verde): o primeiro, que parte da Rua São Francisco, atravessa o Terreiro de Jesus, e segue pela Rua das Portas do Carmo, desce o Pelourinho em direção à Ladeira do Carmo e se liga à Rua Direita de Santo Antônio além do Carmo; o segundo, que segue pela Rua da Misericórdia, passa pela Praça Municipal, continua pela Rua Direita do Palácio até o Largo do Teatro São João (Praça Castro Alves); o terceiro, subindo a Ladeira de São Bento até Praça da Piedade; e o quarto, também relacionado com o convento dos Capuchinhos em duas direções, da Rua Direita da Piedade ao Campo Grande, e da Rua da Lapa até o Campo da Pólvora.
Ladeiras não menos importantes também se estruturaram nos primeiros séculos da cidade (em amarelo): Taboão, Misericórdia, Conceição e Preguiça. Já quando falamos da cidade baixa, no trecho que conhecemos como a região do Comércio, apenas a Rua do Pilar aparece no mapa como direção de acesso à longínqua Península de Itapagipe, ao norte. Esta via se liga às ruas mais antigas no sopé da encosta até a Igreja do Corpo Santo.
O mapa de Carlos Weyll, da década de 1860, nos dá informações de várias regiões da cidade.
Ao sair do centro antigo de Salvador, seguindo para o norte, pela cidade baixa, temos uma visão da ocupação de uma estreita faixa de terra (em verde), que compreendia a via de acesso por terra à Calçada.
Essa via nem sempre era utilizada, pois dependia das marés, contudo, ela corresponderia, mais ou menos, ao que temos hoje como Avenida Jequitaia.
Ela iniciava no Largo do Pilar e seguia até o conjunto dos Órfãos de São Joaquim. As ladeiras da Água brusca e do Canto da Cruz (em vermelho) eram o acesso à cidade alta, especificamente para Santo Antônio Além do Carmo, Barbalho, Soledade e Lapinha.
No istmo que liga a Península de Itapagipe ao continente há uma indicação de um canal (em azul), obra de engenharia pensada desde o início do século XIX pelo, então, governador da capitania, o 8º Conde dos Arcos. Pretendia-se, com a abertura do canal, reduzir o tempo de chegada das mercadorias oriundas do Recôncavo até o porto de Salvador.
Segundo Franklin Oliveira Junior, foi elaborada uma proposta de canal em 1786, mais ou menos no mesmo local, por engenheiros militares portugueses na gestão de D. Fernando José de Portugal, mas as autoridades não se manifestaram a favor do empreendimento.
O canal poderia, então, comunicar a Enseada dos Tainheiros com a entrada da Baía de Todos os Santos pela região do Papagaio até a Calçada. O Conde dos Arcos encaminhou o projeto do canal ao governo imperial mas este não o aprovou.
Entretanto, conforme as pesquisas de Oliveira Junior, há indícios de que as obras do canal foram iniciadas no ano de 1813 com a construção de uma calçada com grandes blocos de pedra, da fortaleza da Jequitaia até a Rua da Calçada. Mais adiante, o autor se refere à vistoria de um canal inconcluso realizada em 1831. Acredita-se que o canal foi construído, mas está hoje aterrado.
Trecho do mapa de Carlos Weyll, c. 1860.
O acesso por terra urbanizado para a Península de Itapagipe demorou a se tornar realidade. No final do século XIX, alguns trechos já haviam sido aterrados, contudo algumas partes da via ficavam alagadas a depender da maré.
No detalhe da fotografia podemos ver a arquitetura dos sobrados do século XIX próximos à igreja da Santíssima Trindade, todos com portas ao rés do chão, uma característica das edificações em que funcionavam pontos comerciais ou de serviços.
Trecho do caminho para a Península de Itapagipe, final do século XIX (Guia Geográfico Salvador Antiga).
A Avenida Jequitaia (jiquitaia em tupi, um tipo de formiga pequena e de cor avermelhada), recebeu o nome do antigo Arrabalde da Jequitaia, hoje conhecido como Bairro da Calçada, mas foi construída aos poucos.
Primeiramente, as melhorias aconteceram na Calçada, cerca de 1860, quando começou a funcionar a Bahia and San Francisco Railway, a quarta ferrovia brasileira, e com a instalação da Estação da Calçada. Em 1869 passa a funcionar a linha de bonde, a tração animal, dos Coqueiros de Água de Meninos até o Bonfim, no entanto, o acesso do Comércio até a Calçada continuava precário. Em 1910, melhoramentos ocorreram por conta das obras de saneamento do bairro comercial para reduzir os focos de febre amarela e de peste bubônica, mas eles limitaram-se ao espaço entre a Alfândega (Praça Cairu) e a Associação Comercial.
O governador José Joaquim Seabra, na sua primeira gestão (1912-1916), deu continuidade às melhorias para a articulação do porto com a ferrovia, fundamental para o escoamento das mercadorias e abastecimento da cidade.
O acesso se dava por uma via estreita, considerada insalubre por conta do trânsito difícil e pelas habitações precárias. Projetou-se, então, uma avenida com 20 m de largura, entre o Mercado do Ouro e a região da Calçada, que foi batizada de Avenida Jequitaia. A obra foi financiada pelos comerciantes baianos e com empréstimos estrangeiros.
A finalização da Avenida Jequitaia, no entanto, só ocorreu na década de 1930, quando recebeu toda a infraestrutura para a passagem de bondes elétricos nos dois sentidos, pavimentação, calçadas e paisagismo. Para isto acontecer foram necessárias duas ações: a demolição de edificações, inclusive a igreja do Hospício dos Carmelitas, que ficava próxima à igreja de Nossa Senhora do Pilar; e a expansão para o mar em sucessivos aterros.
Trecho da Avenida Jequitaia e expansão dos aterros, c. 1930 (Guia Geográfico Salvador Antiga).
Naa figura acima podemos verificar as novas fachadas dos mesmos sobrados registrados na figura anterior. As reformas aconteciam, às vezes, apenas na redefinição das fachadas, como foi neste caso. Os sobrados receberam o mesmo tratamento estilístico, desprovido das características da arquitetura colonial baiana, uma pena.
..:: ::..
Para saber mais
FERNANDES, e. R. Do mar da Bahia ao Rio do Sertão: Bahia and San Francisco Railway. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2006.
OLIVEIRA JUNIOR, Franklin. Canal do Conde dos Arcos, uma obra visionária do período joanista. Salvador: SENGE, 2008.
PINHEIRO, E. P. Europa, França e Bahia: difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.