Gina Marocci

Salvador: o transporte feito por escravos antes da chegada do bonde

Nas últimas três semanas nós conversamos sobre a história dos transportes públicos urbanos e vimos as modalidades e quais cidades foram pioneiras na instalação delas. Hoje vamos começar a nossa viagem pela história dos transportes em Salvador. E para falar sobre transporte de pessoas não podemos deixar de falar sobre a escravidão humana, principalmente a dos povos africanos. Pois é, além de andar a pé, os soteropolitanos poderiam se valer da força dos escravos que os carregavam em redes ou em cadeirinhas de arruar. Triste Bahia...


Senhor na rede, transportado por escravos (ilustração de Debret)

A nossa cadeirinha de arruar é um tipo de liteira, uma cadeira portátil transportada por dois carregadores humanos. A sua história remonta à Antiguidade tanto no Ocidente como nas culturas orientais, em que é chamada também de palanquim. Aqui no Brasil, apenas escravos as transportavam. Havia cadeiras de arruar para longas viagens que eram transportadas por animais de carga ou de montaria.

Cadeirinha de arruar
Cadeirinha de arruar

Cavalos, cadeirinhas de arruar, charretes, todos eram meios de transporte particulares, mas ainda na primeira metade do século XIX, o Barão de Caçapava, presidente da Província da Bahia, publicou a Lei no 224, de 1845, que concedia privilégio exclusivo por 10 anos a quem quisesse estabelecer uma linha de omnibus (isso mesmo, como em Paris!) desde as Pedreiras até a Baixa do Bonfim, ou seja, para facilitar o transporte de pessoas da Península de Itapagipe até a área comercial na cidade baixa.

O percurso era de aproximadamente 8 km, mas o empresário teria de realizar o calçamento, a drenagem, o nivelamento das vias e aterrar charcos e pântanos. Não houve interessados. Imaginemos, então, como era difícil a circulação em Salvador por terra.

Na cidade alta, a topografia acentuada exigia a construção de pontes e viadutos para interligar bairros. Na cidade baixa, manguezais, charcos e pântanos, além das alterações da maré, faziam o acesso por mar ser mais fácil.

Foi com a chegada do italiano Rafael Ariani que a situação mudou. Em 1849 ele estabeleceu uma fábrica de carros que construía gôndolas de excelente qualidade para a linha do Bonfim. Em 1851 ele começou a fabricar carros de aluguel para servir às freguesias da Sé, de S. Pedro, da Conceição da Praia e do Pilar.

Nesse mesmo ano, o Major Filgueiras, deputado pela Bahia, assumiu a linha de gôndolas que ia da Vitória ao largo do Teatro São João (atual Praça Castro Alves).

Essas gôndolas eram carruagens com capacidade para comportar um número maior de pessoas. Eram puxadas por um ou dois burros e tinham um condutor.

Em 1859 Ariani se uniu a ilustres acionistas baianos, dentre eles o Comendador Antônio de Lacerda, negociante e industrial, o Conde Joaquim Pereira Marinho, possivelmente a maior fortuna da Bahia e José Félix da Cunha e Meneses, grande latifundiário rural e urbano. O objetivo deles era construir duas linhas de bonde a tração animal, agora sobre trilhos, uma na Ladeira da Conceição, outra na Rua da Vala (futura Baixa dos Sapateiros), melhorar a frota e disponibilizar carros mortuários.

Para obter a concessão, a Companhia formada pelos acionistas deveria se responsabilizar pela limpeza urbana (lixo e águas sujas das casas). É interessante observar que Salvador foi a segunda cidade brasileira a implantar esses bondes, pois a capital, o Rio de Janeiro, foi a primeira. Logo, estávamos em sincronia com outras grandes cidades pelo mundo na tecnologia de transporte de passageiros.

Na mesma época outros trilhos transportaram passageiros. Inaugurada em 1860, a Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco (Bahia and San Francisco Railway), que ligava Salvador a Alagoinhas, começou a funcionar e teve sua estação principal construída no bairro da Calçada, conforme o projeto do engenheiro inglês John Watson, que foi o empreiteiro da construção da estrada.

A ponte São João, erguida em 1860 para passar a linha férrea de Lobato a Plataforma, foi considerada a mais perfeita obra em ferro de toda a estrutura da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco realizada no Brasil. Originalmente, tinha a estrutura metálica com vigas de ferro batido apoiadas em pilares de ferro fundido, 546 m de comprimento e 4,30 m de largura. Com o funcionamento da linha férrea o subúrbio de Salvador se expandiu ao longo dela e se consolidou o bairro de Plataforma.

Continuaremos nossa viagem na próxima semana com a instalação dos ascensores verticias e inclinados em Salvador.

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Para saber mais

SAMPAIO, C. N. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

FERNANDES, Etelvina R. Do Mar da Bahia ao Rio do Sertão: Bahia and San Francisco Railway. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 2006.