Cassiano Antico

Tenho o amor de 2 crianças (já posso fechar todos os livros)

 
“Eu sou a juventude, eu sou a alegria – respondeu Peter num impulso. – Sou um passarinho que furou a casca do ovo
-- Peter Pan

Estava ouvindo "Veio um golfinho do meio do mar roxo, veio sorrindo pra mim", quando o interfone tocou. Pausei no trecho "Só eu, velho, sou feio e ninguém", e fui atender.

Era do correio, um presente do meu amigo Antônio Carlos; o livro "Fantasma de Canterville e outros Contos", de Oscar Wilde. Chamei minhas filhas Valentina e Isadora e  abrimos direto no conto "O Gigante Egoísta", que narra a história de um gigante dono de um belo jardim; as crianças das redondezas sempre brincavam com as flores, árvores e pássaros, mas o gigante decide isolar o jardim para ficar em paz. "Que gigante mau", diz Dodó. "Ele deve ser muito triste", conclui Valentina durante a leitura. 

Pouco antes, eu estava mergulhado em Mark Twain. Twain atingiu o seu ápice como escritor já na velhice, quando decidiu que o rótulo de escritor bem-humorado não lhe fazia jus.

Ele estava solitário e com pouca fé na humanidade. Percebeu que as décadas tinham passado, mas os problemas dos homens eram os mesmos: ganância, falta de empatia, individualismo, crueldade, barbáries, roubo.

Twain decidiu que precisava escrever sobre aquilo. Como interlocutor de todos os problemas que gostaria de destacar no livro, Twain escolheu o próprio diabo como personagem. E assim surgia o livro “O Estranho Misterioso”.

A história se passa numa aldeia, durante a idade média, e narra o encontro de três crianças com um estranho que se apresenta como um anjo chamado Satã. Rapidamente o homem tenebroso conquista a atenção do trio com suas habilidades especiais, como leitura de mentes, a capacidade de fazer aparecer alimentos.

Ao mesmo tempo em que demonstra certo interesse pela vida humana, Satã a despreza, dizendo que a mente dos homens é pouco desenvolvida e que suas ações são irracionais e sem sentido. Satã acaba se envolvendo com a aldeia. Suas ações  influenciam a vida das pessoas, porém as três crianças permanecem como as mais próximas dele, especialmente Theodore, o protagonista da história.

O livro repleto de metáforas, traz inúmeros questionamentos a respeito da ética e da natureza humana. Satã evidencia que o egoísmo nos isola, o egoísmo mata o que há de melhor em nós.

Satã, ocupando o papel de porta-voz do próprio Mark Twain, questiona quem somos. Questiona, por exemplo, o uso da palavra desumano quando é dita por um dos garotos, depois que um homem agride um cão sem motivo algum. Lembra que nenhum ser no universo é capaz de tanta crueldade, a não ser, justamente, o humano, o que torna essa palavra no mínimo discrepante.

Em outro trecho, reflete a respeito da relação entre inteligência e felicidade. Diz que apenas os que têm uma visão extremamente distorcida da realidade conseguem ser efetivamente  felizes. Os demais, quanto mais inteligentes forem, mais tristes serão, pois perceberão o que o mundo realmente é: um grande palanque  de injustiças e mentiras. É que ser bom num mundo mau e doente parece ser tarefa por demais quixotesca. 

É só dar uma olhada na história da humanidade: a imagem de Oskar Schindler - ajoelhado e em prantos -, porque não se considerava um herói, mas apenas alguém que tentou fazer genuinamente algo para salvar. Sua atitude o transformou num dos maiores casos de amor à vida, pois este alemão abdicou de toda sua fortuna para salvar mais de mil judeus em plena luta contra o extermínio alemão. Mas ele está de joelhos, chorando e pensando que poderia ter feito mais. Os verdadeiros heróis sabem que suas ações são obrigações para a preservação da dignidade humana. Não se importam com medalhas, aplausos. Schindler foi um dos maiores heróis do nosso mundo.

Alguns definem a solidão, outros caminham solitários e alivam a dor do seu semelhante. Uns lêem a arte da guerra, outros lutam sozinhos contra exércitos inteiros. E outros, ainda, se escondem debaixo da cama - agarrados a uma cruz.

O que eu tenho na minha frente, agora, não é o Satã de Twain dizendo verdades, nem o Golfinho de Caetano trazendo belas orgias, nem o Grande Egoista de Oscar Wilde se redimindo... Eu tenho o amor de duas crianças. Foi o amor que tocou o coração de São Francisco. É o amor que salva e nos liberta das mazelas deste mundo. O amor só pode ser Deus!

Mergulho nas profundezas da consciência e continuo a examiná-la. Não o faço sem dor ou calafrios. Nada existe mais terrível que esse tipo de investigação. Os olhos da alma não podem encontrar em nenhum lugar nada mais ofuscante, nada temível, mais misterioso e mais infinito.

Existe uma coisa que é maior que o mar. Existe um espetáculo maior que o céu: o interior da alma humana, como escreveu Victor Hugo. O gigantesco mistério. E este mistério jamais poderá ser desvendando. Concluo que a vida só tem sentido através das lentes de uma criança, de um coração bondoso. Todo o resto é decepção e amargura.

Talvez você encontre calhamaços de definições magníficas e dignas de prêmios sobre a nossa raça cruel. Eu encontrei, mas decido fechar os livros. Todos! Sou Peter Pan, arremeço capitão Gancho na garganta do crocodilo, assumo o controle do navio que navega livremente por todos os mares. Estou na terra do Nunca. Sou o Nunca.