Opinião

Lembranças do meu único colega com deficiência

Consigo, nesse momento em que escrevo, ver na minha mente os olhos de Guga

Foto: Raphael Brasileiro/Pexels/Creative Commons

Acho tão bizarro o fato de que no atual estágio da humanidade ainda seja necessário discutir o acesso de pessoas com deficiência à escola regular. Também considero uma pena que o debate seja encabeçado somente pela militância e pelos pais das pessoas com deficiência e fique restrito, muitas vezes, à esfera da discussão polarizada e superficial das redes sociais.

Tenho uma filha com Síndrome de Down e outra que faz parte do grupo majoritário das crianças típicas. Para ambas, é igualmente importante como experiência educacional poder conviver no ambiente escolar com outras crianças com e sem deficiência. 

Para a caçula ainda é um direito que, infelizmente, se faz necessário defender. Para a mais velha, é algo desejável por ser enriquecedor à sua formação e tão ou mais significativo que uma série de coisas que se aprende na escola.

Quando eu já estava na faculdade, por ocasião dos 15 anos de minha irmã, meus pais contrataram, para fazer o buffet da festa, uma professora do nosso colégio que exercia, paralelamente, essa outra atividade.

Ela tinha sido minha professora de Geografia no segundo ano do segundo grau (até hoje não sei direito as nomenclaturas atuais) e estava acertando com minha mãe e minha irmã os detalhes da festa quando me aproximei para observar a conversa.

Ela disse que se lembrava muito de mim. Eu costumava ser paparicada pelos professores por ter boas notas e também era conhecida por ter sido líder de classe, mas, no caso dela, estranhei o comentário, porque ela era o tipo de professora que não dava margem a uma relação de maior proximidade com os alunos.

Eu falei que tinha sido aluna dela e devo ter mencionado o ano ou alguma referência sobre a turma. E ela falou que nem se recordava de que havia sido minha professora, mas lembrava de mim quando eu era criança e do carinho que eu tinha com o filho dela. 

Eu nem sei se eu sabia que ela era mãe de Guga, mas lembrava muito bem desse meu colega de infância e fiquei bem sentida, quando perguntei por ele, e a mãe falou que ele já havia falecido.

Guga tinha uma síndrome rara e foi a única criança com algum tipo de deficiência (dentre os vários que existem) com quem eu convivi em toda a minha vida escolar. É bem provável até que ele só tenha tido oportunidade de frequentar o colégio em que eu estudava por ser filho de uma professora do quadro docente. 

Eu não faço a menor ideia do que se aprendia nas aulas de Geografia do segundo grau, mas me recordo de detalhes da minha convivência com Guga muitos anos antes, se não me engano, na fase ainda do primário (3ª e 4ª séries chama como?).

Eram poucas crianças que ficavam com ele na hora do recreio. E, com uma certa frequência, eu voltava para sala logo depois de merendar para fazer parte desse grupo.

Fazia isso não para ser solidária e não deixar que ele ficasse sozinho na sala, mas porque me divertia bastante com a companhia dele. Guga era bem brincalhão e tinha uma alegria contagiante. 

Às vezes, eu ficava desconcertada, mas gostava quando ele dizia que eu era linda

Ele era mais velho do que as outras crianças da turma e fazia galanteios para as meninas.

Também lembro que eu admirava a atenção  que um outro colega tinha com ele. Pablo, além de melhor amigo, exercia o papel de cuidador, o ajudava com o lanche e nas idas ao banheiro. Guga tinha as pernas e os braços longos e atrofiados, mas conseguia andar com o auxílio de muletas.

Pablo usava um óculos de lentes grossas e era todo sério. E eu achava engraçado o jeito como Guga o repreendia, por estar atrapalhando a conversa dele com as meninas ou pela falta de senso de humor.

Não tenho mais nenhuma outra lembrança de Pablo, mas tenho forte essa recordação da relação de cuidado que ele tinha com Guga.

A convivência com esse meu colega com deficiência foi muito breve (por no máximo dois anos consecutivos) se comparada com a que tive com a maioria dos colegas com quem estudei durante 10 anos naquela escola. Mas foi tão marcante ao ponto de evocar memórias tão vívidas e que remontam a bem mais de trinta anos.

Consigo, nesse momento em que escrevo, ver na minha mente os olhos de Guga, que eram de um castanho esverdeado, e sentir a ternura que emanava deles. Já das aulas de Geografia que tive com a mãe dele, que era uma das professoras mais competentes da escola, não tenho sequer a mínima lembrança.

O que realmente importa na vida escolar de uma criança, de um adolescente? O que é, de fato, significativo? 

Eu poderia ter escrito um texto usando, além do meu Português correto, toda a habilidade argumentativa que adquiri em tantos anos de estudo, para sustentar o que penso em meio a esse debate sobre a inclusão de pessoas com deficiência na escola regular, mas o meu coração preferiu me levar a esse encontro com Guga, num lugar tão distante no passado e ao mesmo tempo tão presente na memória.