Cassiano Antico

Como ser feliz na quarentena e viajar pra todo lugar (em casa)


Foto: pxhere/Creative Commons

 
Querer ser livre é também querer livres os outros
-- Simone de Beauvoir

Todos os dias elas viajam para algum lugar. Valentina pega a mala preta grande e Isadora, a vermelha um pouco menor. Colocam luvas, cachecóis e vão para Paris. “Lá tem neve, né, papai?”.

Maiôs, biquinis, os óculos de nadar, e vão para o Rio de Janeiro. “Tem muitas praias, né, papai?”.

As cadeiras da mesa de jantar viram poltronas de um avião bem apertadinho. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Livros da estante viram o entretenimento dos passageiros, que tem até lanche, água e suco. “Tem avião que dá jantar, papai?”. “Sério? Eu quero ir para o Japão um dia”. “Vem, papai, você é o piloto”.

As malas vão para baixo do pula-pula, que faz as vezes do bagageiro. Voamos alto, vemos a cidade pequenininha, comemos salgadinhos, elas correm, pulam, não param nem para voar. A mãe ri da ponta do sofá.

Somos felizes em plena quarentena. Mas não nos damos conta. São mais de trinta mil mortos (enquanto escrevo) que não puderam ser velados, que viraram números, que não vão voar para Paris, nem para o Rio de Janeiro, nem em cadeiras de madeira pesada ocupadas por bichos de pelúcia e bonecas enormes.

O sofrimento produz a cólera; no momento em que as classes dominantes se tornam cegas ou dormem ou não fazem coisa nenhuma enquanto negros morrem pisoteados: as ruas reagem. Não se trata mais da luta do oprimido contra o opressor, do humilhado contra o carrasco, da revolta da privação contra o bem-estar, do rico contra o pobre: mas da vida contra a morte. E tudo desaba. O chão se abre, o terremoto vai derrubar aquele edifício superfaturado antes que a paz possa nascer no mundo. Porque a coroa é do povo.

A revolução sempre foi a vacina. Olha a história da humanidade... Revolução francesa, russa, ou até mesmo a revolução pacifista de Gandhi. O sentimentos de revolução são os olhos se abrindo, é a gota d'água, é Golias sendo derrubado, é minha filha dando seus primeiros passos e dizendo adeus ao rastejar.

A lei de todos é a liberdade, que acaba onde começa a do outro, segundo a definição de Robespierre. E o passado nos intimida, nos humilha. Um cadáver mal assombrado saiu do túmulo, está montado num cavalo, berra e está armado, espirra e se limpa no idoso. Mas uma legião de torcedores unidos e coloridos como aquarela de criança está a postos. E enfim a possível dissolução do ódio. Paris, Nova York, São Paulo, Gaviões da fiel: um só coração. 

Portas em automático. Seguimos viagem, a cabeça delas nos tira do inferno por alguns minutos.