Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 03 (ou terceira semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

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Segunda-feira. Sandra me ligou logo cedo. Como sempre, com estórias. Me contou que uma cidade em peso tava sob suspeição, por causa de umas malas cheias de um dinheiro que teria sido roubado do povo e distribuído sabe-se lá por quem, pra quem, em troca do que...

Ela falou que tava um quiproquó doido na tal metrópole, com residências sendo invadidas tanto por gente dentro da lei como por agentes fora dela — uns querendo recuperar a grana pra devolver pros donos; outros, no melhor estilo ladrão que rouba ladrão...

Sabe revista-surpresa de cela de cadeia? Então... Tipo isso. E nem casa de juiz de alto escalão tava escapando dos baculejos.

Ainda segundo a crônica de minha irmã gêmea, o meio de campo tava tão embolado, mas tão embolado, que ninguém mais sabia quem era quem, se deviam fugir ou pedir socorro, se gritavam polícia, bandido, patrão...

Não comentei nada, pra não esfriar a indignação imaginação dela, mas... cá entre nós, esse enredo tá desperdiçando alvoroço, porque a vida tá bem mais animada que a arte...

Como diz a sabedoria pagodeira, sabe de nada, inocente!

Tô errada?

(será que essa ironia foi minha mesmo ou de Piti? Agora fiquei na dúvida...).

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Terça-feira. Sabe aquela música de Antônio Barros que o grupo “Secos e Molhados” cantava?

“Nunca vi rastro de cobra / nem couro de lobisomem / se correr o bicho pega / se ficar o bicho come / por que eu sou é doido home...”

Lembrou?

Então... Sandra e Piti fizeram um vídeo artístico e mandaram pra mim, cantando essa música e dançando.

Tava uma gracinha, a dupla.

Só não gostei muito do arranjo e da coreografia...

Quando Piti cantava “se correr o bicho pega”, a segunda voz complementava “sai da ruuuuua”, com um ruído de metralhadora ao fundo.

Quando Sandra cantava “se ficar o bicho come”, a segunda voz dizia “sai de casaaaaa”, com um som de máquina registradora ao fundo.

Não vi sentido nessa adaptação...

Você viu?

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Quarta-feira. Os enfermeiros vieram avisar que ia ter um comunicado importante do chefe do sanatório. Liguei a TV e chamei Piti, mas ela disse que não tava interessada. 

Ele deve dizer que é pra a gente parar de lavar as mãos, porque tem gente morrendo ensaboada...

De onde será que ela tira inspiração pra tanta bobagem, gente?!

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Quinta-feira. Acordei pensando que a vida no hospício pode ser melhor depois da crise sanitária, porque as pessoas estão aprendendo muita coisa com o confinamento.

Aí, passei um zap pra Sandra, pra saber o que ela achava, já esperando o pessimismo dela.

Me surpreendeu. Disse que eu tinha razão, que ela mesma tava aprendendo muita coisa.

Aprendi em quantos segundos encho uma garrafa com água filtrada; quanto tempo uma formiga leva pra caminhar um metro; quantos passos preciso dar pra ir do quarto pro banheiro, do banheiro pra sala, da sala pra cozinha...

Pra quem pensa que a humanidade é um projeto que não deu certo, ela foi bem otimista, né?

Mas... achei a lista de aprendizados dela meio pobre... pensando bem, talvez ela estivesse sendo...

Deixa pra lá!

Quero pensar negativamente não!

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Sexta-feira. Minha colega de quarto me contou que o chefe do sanatório tinha levado uma fakeada facada.

Fiquei preocupada, porque tinham me dito que a gente tava sem posto de saúde aqui.

Mas aí Piti me tranquilizou... Disse que o posto tinha balançado, balançado, mas continuava de pé.

Ufa! Ao menos uma boa notícia na semana, né? (pisc, pisc)

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Sábado. Eu, Sandra e Piti conversamos o dia todo. Não lembro se pelo Skype, se pelo Whatsapp, se... Bom, não importa. O que interessa é que elas estavam comigo — o que aliás não é muito comum. Em geral, passo os sábados em minha própria companhia.

Eu adorei, claro, mas os médicos não gostaram. Preferiam que eu estivesse só, ou, como disseram, que Sandra e Piti estivessem dentro de mim...

(e a louca sou eu...).

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Domingo. Acordei mais deprimida do que de costume... Sonhei que Vinícius de Moraes tinha trocado os versos de uma música dele que eu adoro. Acho que vocês conhecem. É aquela que diz "Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto / Não tinha nada...".

Lembraram? Então, a letra tinha ficado assim:

"Era uma pátria
Muito sem graça

Não tinha afeto
Não tinha nada

Ninguém podia
Pensar nela não

Porque arriscava
Ir pro caixão

Ninguém podia
Dormir feliz

Porque a pátria
Tava por um triz

Ninguém podia
Sequer sorrir

Porque justiça
Não tinha ali

Era uma pátria
Sem muito esmero

Cheia de bobos
E pistoleiros!"

Caraca! Dá pra ficar sem remédio não... Vou acabar presa louca de vez...

(porque hoje é domingo...)