SUPER-RICOS

Como tributar as grandes fortunas?

A regulamentação de um imposto sobre grandes fortunas poderia arrecadar bilhões e reduzir desigualdades, mas enfrenta desafios práticos, riscos de evasão e forte resistência política

Alberto Oliveira é jornalista, especializado em Economia e editor do portal de notícias LEIAMAISba

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Conta de impostos
a FUGA DE CAPITAIS É UMA DAS CONSEQUÊNCIAS DA TAXAÇÃO
(ILUSTRAÇÃO: GEMINI IA)

DESDE A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, o Brasil prevê a possibilidade de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Porém, ao longo de décadas, inúmeras propostas para regulamentá-lo foram apresentadas -- e todas fracassaram.

Críticos da ideia apontam para a dificuldade prática de definir com clareza o que é “grande fortuna” e também para o risco de fuga de capitais ou elisão fiscal -- isto é, manobras legais para escapar da tributação.

Recentemente, o debate reacendeu com sugestões de que fortunas acima de certos patamares -- por exemplo, R$ 20 milhões -- fossem tributadas anualmente com alíquotas de 0,5% a 1%. Sob esse modelo, algumas estimativas indicam que o potencial arrecadatório poderia alcançar cifras da ordem de R$ 40 bilhões por ano, o que representaria cerca de 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB).

Entretanto, há ressalvas importantes: experiências internacionais mostram que altas alíquotas costumam reduzir a base tributável, já que muitos indivíduos e famílias escolhem realocar ativos para locais com tributação mais leve, o que mina a eficácia da medida.

França: referência histórica, mas experiência encerrada

A França implementou o Impôt de Solidarité sur la Fortune (ISF) em 1989, um imposto anual com alíquotas progressivas que variavam de 0,5% a 1,5%, sobre patrimônios superiores a € 1,3 milhão (cerca de R$ 8 milhões).

Consequências:

Fuga de capitais: estima-se que mais de 10 mil milionários deixaram o país entre 2000 e 2016.

Perda de arrecadação: entre arrecadação direta e indireta, o Estado perdeu mais do que arrecadou.

Fim do imposto: em 2018, o presidente Emmanuel Macron extinguiu o ISF, substituindo-o por um imposto apenas sobre imóveis de alto valor, numa tentativa de atrair de volta investimentos privados.

Alemanha: tributação de riqueza interrompida por inconstitucionalidade

O país teve um imposto sobre grandes fortunas até 1997, conhecido como Vermögensteuer, que era aplicado sobre ativos líquidos e imóveis.

Consequência:

A Corte Constitucional declarou o imposto inconstitucional, alegando falta de isonomia entre diferentes tipos de ativos (imóveis, ações, etc.).

Desde então, não houve retomada desse tipo de tributo, mas há debates pontuais sobre a sua volta, especialmente entre partidos de esquerda.

Espanha: modelo regionalizado com retorno em momentos de crise

A Espanha implementou um imposto sobre o patrimônio líquido (com isenção parcial e alíquotas de 0,2% a 2,5%), aplicável em vários níveis conforme a região.

Consequência:

O imposto foi suspenso em 2008, mas reintroduzido em 2011 devido à crise econômica.

Em Madrid, o governo regional isenta totalmente os contribuintes, enquanto outras regiões como Catalunha e Andaluzia mantêm a cobrança, o que leva à desigualdade fiscal interna e incentiva migração de residentes ricos entre regiões.

Noruega: caso de persistência com ajustes

A Noruega mantém até hoje um imposto sobre patrimônio líquido (acima de NOK 1,7 milhão, ou cerca de R$ 900 mil), com alíquota de até 1,1%.

Consequência:

A medida gera receita estável, mas recente aumento nas alíquotas provocou êxodo de milionários. Segundo a Bloomberg (sistema global de serviços financeiros), mais de 50 grandes empresários deixaram o país entre 2021 e 2023, incluindo o bilionário Kjell Inge Røkke.

Apesar disso, o governo defende o imposto como ferramenta de redistribuição de renda eficaz.

Colômbia: caso recente na América Latina

Em 2022, o governo Gustavo Petro introduziu um imposto anual sobre grandes fortunas (acima de COP 3 bilhões, equivalente a cerca de R$ 4 milhões), com alíquotas de até 1,5%.

Consequência:

A medida dividiu o empresariado e gerou sinais de desconfiança no mercado financeiro.

Ainda é cedo para avaliar o impacto fiscal efetivo, mas Petro defende a medida como essencial para financiar programas sociais.

Defensores: justiça fiscal e redução da desigualdade

Para pesquisadores e ativistas, tributar os super-ricos seria uma forma de corrigir um sistema desigual, em que os mais pobres e a classe média arcam com a maior parte da carga tributária.

A taxação de grandes fortunas poderia liberar recursos para políticas públicas: educação, saúde, infraestrutura, assistência social -- fundamentais em um país marcado por extrema desigualdade.

Críticos: fuga de capitais e dificuldade de aplicação

A definição de quem deve ser tributado é difícil: estabelecer o patamar de patrimônio que configure “grande fortuna” envolve variáveis complexas e pode ser contestada judicialmente.

A experiência internacional alerta que altos impostos sobre a riqueza frequentemente resultam em evasão fiscal ou realocação de ativos para outros países -- o que diminui a arrecadação e reduz a eficácia da medida.

Gráfico Impostômetro
SESSÃO PLENÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
(FOTO: NELSOPN JR. | STF)

O impasse político

No início de novembro deste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria de votos, que o Congresso Nacional se omitiu ao não regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição. A decisão, com placar de 8 a 1, não fixou prazo para que o Legislativo elabore a norma.

A decisão foi tomada no julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), protocolada pelo PSOL. O partido argumenta que o imposto é essencial para combater desigualdades sociais e promover justiça fiscal. A maioria dos ministros reconheceu a omissão legislativa, mas sem determinar um prazo para que o Congresso edite a regulamentação.

O caso foi relatado pelo ministro aposentado Marco Aurélio, que já havia apresentado seu voto antes de deixar o cargo. Por isso, o atual ocupante da vaga, ministro André Mendonça, não participou do julgamento.

Durante seu voto, o ministro Flávio Dino destacou que o princípio da capacidade contributiva está previsto na Constituição, defendendo que os tributos devem respeitar esse critério. Ele citou como exemplo os impostos sobre consumo, que afetam de forma desproporcional as diferentes camadas sociais. Dino propôs que o Congresso tivesse até 24 meses para legislar sobre o tema.

Apesar da proposta, a maioria dos ministros -- entre eles Cristiano Zanin, Nunes Marques, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes -- acompanhou o relator Marco Aurélio ao decidir não impor prazo ao Legislativo, embora tenham concordado com os fundamentos apresentados por Dino.

O ministro Alexandre de Moraes, que presidiu a sessão, observou que a União criou diversos tributos, mas deixou de regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição. Segundo ele, a complexidade da medida exigiria uma lei complementar, como previsto pelos constituintes.

O único voto contrário à tese da omissão foi do ministro Luiz Fux, que defendeu que o tema deve ser tratado exclusivamente pelo Legislativo. Para Fux, o Judiciário deve exercer autocontenção diante da autonomia do Parlamento.

Os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin não participaram da sessão por ausência justificada.

Visto como uma potencial fonte de arrecadação para o país, o imposto sobre grandes fortunas é tema de pelo menos cinco projetos de lei em tramitação no Senado: o PLP 101/2021, do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP); o PLP 38/2020 , do senador Reguffe (Podemos-DF); o PLP 50/2020, da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA); e o PLP 183/2019, do senador Plínio Valério (PSDB-AM); e o PLS 315/2015, do senador Paulo Paim (PT-RS). A taxação sobre grandes fortunas está prevista na Constituição (artigo 153, inciso VII), mas nunca foi regulamentada.

Usos dos impostos
O JURISTA IVES GANDRA MARTINS
(FOTO: INSTAGRAM | REPRODUÇÃO)

Contra...

A Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) avalia que qualquer proposta de tributação sobre grandes fortunas deve considerar o cenário político e socioeconômico brasileiro, além da viabilidade prática de sua implementação. Para a entidade, a simples intenção de instituir esses tributos não basta, sendo essencial analisar seus efeitos reais sobre a sociedade.

Na avaliação da FecomercioSP, medidas como essas desencorajam investidores que assumem riscos para gerar emprego e riqueza, o que impactaria negativamente toda a população.

O presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP, Ives Gandra Martins, considera que a taxação sobre grandes fortunas representa uma falsa ideia de redistribuição de renda. “A verdadeira redistribuição ocorre pela ação da própria sociedade, por meio da produção de bens, geração de empregos e oferta de serviços. É a sociedade, e não o Estado, quem move a economia, desde que não sofra interferência negativa do governo”, afirmou.

A FecomercioSP baseia parte de sua análise em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. Segundo os levantamentos, a formação de poupança ocorre, majoritariamente, entre as faixas de renda mais alta, justamente aquelas que seriam atingidas por novas tributações. Por outro lado, as camadas de menor renda apresentam tendência ao endividamento, sendo dependentes do capital poupado por grupos de renda superior.

A entidade afirma que a tributação sobre grandes fortunas e heranças tem apelo ideológico e baixa efetividade, além de poder comprometer o ambiente de negócios. Entre os possíveis efeitos negativos, estão a retração dos investimentos, a redução da poupança e a instabilidade no setor imobiliário. Ainda segundo a federação, embora o sistema tributário brasileiro seja regressivo, a adoção dessas medidas geraria um acréscimo de arrecadação pouco significativo, sem resolver as distorções existentes.

...e a favor

O Ministério da Fazenda propôs, em reunião do G-20 (que reúne as 20 maiores economias do mundo), um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza de bilionários, o que poderia gerar entre US$ 200 e 250 bilhões por ano. A proposta é baseada em estudo elaborado pelo economista francês Gabriel Zucman, professor da Escola de Economia de Paris e da Universidade da Califórnia. O modelo de tributação progressiva sugerido atinge cerca de 3 mil indivíduos com patrimônio superior a US$ 1 bilhão e que atualmente não contribuem com, ao menos, 2% de imposto de renda anual.

Segundo o estudo, esses patrimônios estão distribuídos entre ativos financeiros, imóveis, ações e participações empresariais. O texto esclarece que apenas pessoas com elevado patrimônio líquido e baixa contribuição fiscal seriam impactadas pela medida.

Zucman defendeu que a proposta é viável do ponto de vista técnico e elogiou a decisão do G20 sob a presidência brasileira por levar o tema à pauta das maiores economias do mundo. “Pode parecer uma ideia utópica, mas é aplicável em diversos países. Há motivos para acreditar que esse objetivo pode ser alcançado com o tempo”, afirmou.

Para o economista francês, a eficácia da proposta depende da cooperação entre os países. Ele argumenta que uma taxação coordenada internacionalmente ajudaria a evitar práticas como a ocultação de renda e o deslocamento de ativos para jurisdições com menor carga tributária. O economista afirma que a proposta pode ser adotada em conjunto ou individualmente por cada país, utilizando mecanismos nacionais, como impostos baseados em renda ampla ou sobre o patrimônio.

Desafios e viabilidade
A proposta enumera os principais obstáculos à sua implementação: a dificuldade de avaliar o valor real da riqueza individual, a falta de transparência nas transações financeiras internacionais e a coordenação limitada entre países. No entanto, Zucman argumenta que é possível avançar com base em iniciativas já discutidas no G20, como a troca automática de informações bancárias e o imposto mínimo global sobre multinacionais.

Para o economista, o plano de ação deve ser visto como um instrumento técnico voltado a embasar o debate político, apresentando alternativas viáveis e caminhos para superar os desafios identificados. Ele enfatiza que, embora a proposta atinja um número restrito de contribuintes, seu potencial de arrecadação é significativo.