Como tributar
o que está na nuvem?
A fábrica pode estar em um país, o servidor em outro, o registro fiscal em um terceiro, enquanto os usuários que geram os dados espalham-se por todo o mundo
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AS EMPRESAS MAIS VALIOSAS DO PLANETA não têm minas, poços de petróleo ou linhas de montagem. Possuem bancos de dados. Milhões de perfis de consumidores, registros de localização, hábitos de consumo, padrões de atenção, redes de relacionamento.
E é exatamente aí, argumenta o historiador israelense Yuval Noah Harari em “Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial”, que nasce um desequilíbrio profundo entre poder econômico e tributação.
Harari observa que, à medida que mais coisas passam a ser valorizadas em termos de informação, enquanto os sistemas fiscais continuam focados em dinheiro e ativos tradicionais, a relação entre riqueza e impostos se distorce.
Em outras palavras, gigantes digitais acumulam poder e valor sem que isso se traduza, na mesma proporção, em arrecadação de tributos ou em capacidade dos Estados de regular o jogo.
Quando riqueza é dado, não fábrica
“Quem controla os dados controla o futuro”, tem repetido Harari em palestras e textos sobre inteligência artificial e política. Em Nexus, ele amplia esse argumento: redes de informação -- das estradas romanas às plataformas digitais -- sempre reorganizaram o poder econômico e estatal. A diferença agora, segundo o autor, é a velocidade e a escala: algoritmos conseguem extrair valor de dados pessoais com uma eficiência que os sistemas tributários não acompanham.
Hoje, parte considerável da riqueza das grandes plataformas digitais está no capital intangível: marcas globais, código, patentes e, sobretudo, bases de dados. Relatório do Parlamento Europeu descreve os dados como um ativo cuja propriedade está cada vez mais concentrada em poucas empresas de tecnologia, ao mesmo tempo em que o valor econômico total desse recurso permanece difícil de mensurar.
Nesse contexto, a velha pergunta sobre “onde está” a riqueza tributável perde nitidez. A fábrica pode estar em um país, o servidor em outro, o registro fiscal em um terceiro, enquanto os usuários que geram o dado espalham-se por todo o mundo. O imposto segue preso a fronteiras nacionais; os dados, não.
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A resposta dos organismos internacionais: taxar lucros, não dados
Os principais organismos internacionais reconhecem que a digitalização embaralhou por completo as regras do jogo tributário. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que já não faz sentido “isolar” uma suposta “economia digital”, porque, na prática, a economia como um todo se tornou digitalizada.
Desde 2013, a OCDE coordena o projeto BEPS (sigla em inglês para Erosão de Base Tributável e Transferência de Lucros), que evoluiu para a chamada solução em “dois pilares” -- um conjunto de reformas destinado a redistribuir parte dos lucros de multinacionais para os países onde estão seus consumidores e a garantir uma alíquota mínima global sobre lucros corporativos.
A lógica continua, porém, centrada em lucro contábil e renda, não em fluxo de dados. Mesmo nos documentos mais recentes, que reconhecem o papel central da informação digital para os modelos de negócio, o foco está em onde e como tributar o resultado financeiro dessas operações, e não em criar uma categoria tributária específica para o dado em si.
O resultado é um sistema que tenta corrigir os sintomas -- lucros deslocados, bases tributárias esvaziadas -- sem enfrentar diretamente a assimetria mais profunda apontada por Harari: o fato de que a relação entre valor criado com dados e impostos pagos permanece opaca.
“Capitalismo de vigilância”: quando o imposto não enxerga o modelo de negócio
Se para Harari a chave é o controle dos dados, a socióloga norte-americana Shoshana Zuboff, em “The Age of Surveillance Capitalism” [A era do capitalismo de vigilância], descreve o fenômeno como uma mutação do próprio capitalismo. Ela define o chamado “capitalismo de vigilância” como uma nova ordem econômica, baseada na captura e comercialização em larga escala de dados comportamentais, marcada por concentrações inéditas de riqueza, conhecimento e poder.
Nesse modelo, o produto principal não é o serviço que o usuário enxerga na tela, mas os rastros digitais que ele deixa -- cliques, tempo de permanência, padrões de deslocamento, preferências. Esses rastros são transformados em previsões de comportamento, vendidas a anunciantes, seguradoras ou outros atores econômicos.
O problema, do ponto de vista tributário, é que grande parte desse processo não aparece claramente nos balanços tradicionais: o dado “bruto” não entra como mercadoria tributável e muitas operações ocorrem dentro de grupos multinacionais, espalhadas por jurisdições de baixa tributação.
A euforia otimista dos primeiros dias da Internet escureceu. O capitalismo de vigilância aprofundou a desigualdade, semeou o caos social e minou a democracia.
Shoshana Zuboff argumenta que ainda temos o poder de decidir em que tipo de mundo queremos viver: “Permitiremos que o capitalismo de vigilância nos envolva em sua jaula de ferro enquanto enriquece poucos e subjulga muitos? Ou exigiremos os direitos e as leis que coloquem esse poder descontrolado sob o Estado de Direito democrático?”.
Dados, valor e “extrativismo digital”
Uma vertente recente do debate econômico, associada ao trabalho da economista Mariana Mazzucato, ajuda a traduzir esse conflito em termos de criação e extração de valor. Em artigos sobre a economia de plataformas, Mazzucato e coautores argumentam que modelos de negócio baseados em dados têm privilegiado a extração de valor -- por meio de mecanismos de captura de renda e poder de mercado -- em detrimento da geração de valor público amplo.
A pergunta tributária que decorre dessa leitura é direta: se os dados que alimentam essas plataformas são produzidos por interações sociais, infraestrutura pública, educação e investimentos estatais em ciência e tecnologia, faz sentido que o Estado receba apenas uma fração mínima da riqueza assim gerada?
Joseph Eugene Stiglitz, economista norte-americano laureado em 2021 com o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, denuncia: corporações violam acordos comerciais, impondo “livre fluxo de dados” -- um mercado global trilionário e livre de impostos.
Alguns estudos defendem explicitamente que países deveriam receber uma “parte justa” da receita obtida com a exploração dos dados de seus cidadãos, tratada como um recurso comparável ao petróleo, muitas vezes descrito como o “novo óleo” da economia digital.
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Para onde escorre o lucro dos gigantes digitais
A discussão sobre tributação dos dados se conecta a um problema mais antigo: o uso de paraísos fiscais para reduzir artificialmente a carga tributária de multinacionais.
Pesquisas lideradas pelo economista francês Gabriel Zucman estimam que algo em torno de 8% da riqueza financeira das famílias do mundo esteja escondida em paraísos fiscais, e que o deslocamento de lucros de empresas para jurisdições de baixa tributação custa aos países cerca de 10% de sua arrecadação potencial de imposto corporativo.
Relatório do FMI, citando Zucman, calcula que indivíduos sozinhos podem sonegar algo em torno de 200 bilhões de dólares por ano em impostos por meio de estruturas offshore. Parte relevante desse movimento envolve setores intensivos em intangíveis, como tecnologia, que conseguem registrar propriedade intelectual e lucros em jurisdições convenientes, mesmo quando a geração de valor está espalhada globalmente.
Principais propostas e ideias de Zucman:
-- Imposto mínimo global: A instituição de uma alíquota de 2% sobre a riqueza de bilionários -- aqueles com patrimônio superior a US$ 1 bilhão -- a ser cobrada pelos países que aderirem a um acordo internacional.
-- Enfrentamento da evasão fiscal: O objetivo é dificultar a transferência de patrimônio para paraísos fiscais, permitindo que os países cobrem o imposto mesmo que o contribuinte tente evitar a tributação ao mudar de jurisdição.
-- Transparência patrimonial: Criação de um registro global de propriedade, capaz de identificar publicamente os titulares de ativos, reduzindo o sigilo e o anonimato bancário que facilitam práticas de evasão.
-- Desigualdade e seus efeitos: Zucman sustenta que a evasão fiscal viabilizada pelos paraísos fiscais aprofunda a desigualdade de renda, com potencial para fragilizar a democracia e gerar tensões sociais.
-- Cenário internacional: A proposta tem avançado em debates multilaterais, como os promovidos pelo G20, especialmente sob a liderança da presidência brasileira do grupo.
Zucman é autor dos livros “The Triumph os Injustice” [O Triunfo da Injustiça], com Emmanuel Saez, e “The Hidden Wealth of Nations” [A Riqueza Oculta das Nações],
-- Experiências emergentes: impostos sobre serviços digitais
Na ausência de um consenso global, vários países começaram a testar soluções próprias. Levantamento do EU Tax Observatory mostra que pelo menos doze países, em diferentes continentes, já adotam algum tipo de Digital Services Tax (DST), voltado a tributar a receita de grandes empresas digitais em funções como publicidade online e intermediação de plataformas.
Esses tributos não chegam a taxar “dados” diretamente, mas procuram atingir mais de perto o coração do modelo de negócio digital -- por exemplo, receitas com anúncios baseados em perfis de usuários.
O Brasil discute uma proposta de imposto de 7% sobre a receita bruta de grandes plataformas digitais, limitado a empresas com faturamento global acima de determinado patamar e com mecanismos para evitar repasse direto aos usuários brasileiros. Em paralelo, o país participa do esforço da OCDE para implementar o imposto mínimo global sobre lucros e avalia medidas para tributar lucros remetidos ao exterior por multinacionais.
Ainda que incipientes, essas iniciativas sugerem um movimento de recomposição parcial da base tributária associada à economia de dados, sobretudo em países que buscam financiar políticas sociais e investimentos públicos sem abrir mão de atrair empresas de tecnologia.
O dado como “estabelecimento permanente”?
No campo mais técnico da tributação internacional, pesquisadores começam a questionar categorias jurídicas tradicionais. Estudo na revista Intertax sugere tratar a mineração de dados como uma espécie de “estabelecimento permanente”, à semelhança de uma mina ou poço de petróleo, o que permitiria aos países reivindicar o direito de tributar parte dos lucros resultantes da extração de dados de seus residentes.
Se essa interpretação prosperar, ela aproximaria o regime dos dados daquele aplicado a recursos naturais: quem “extrai” informação de uma população teria obrigações tributárias específicas no território onde essa extração ocorre.
O próximo passo do debate
A discussão sobre taxar dados diretamente -- seja por meio de royalties digitais, “dividendos de dados” para cidadãos, fundos soberanos de informação ou novas formas de estabelecimento permanente digital -- ainda está em estágio inicial e cercada de controvérsias jurídicas, econômicas e políticas.
O que parece cada vez menos sustentável, porém, é a manutenção de um arranjo em que gigantes que concentram volumes inéditos de dados, influência e poder político podem continuar pagando, proporcionalmente, menos impostos do que empresas enraizadas em economias tradicionais.
Em Nexus, Harari não oferece uma fórmula tributária pronta, mas lança a provocação: se não encontrarmos formas de alinhar o regime de impostos à nova geografia da informação, corremos o risco de criar um sistema em que o poder se desloca para atores que controlam dados, enquanto a capacidade de governar -- e de financiar políticas públicas -- permanece presa a um mundo que já não existe.
Entre legisladores, organismos internacionais e sociedade civil, a disputa que se desenha é justamente essa: quem ficará com a fatura da economia dos dados e quem continuará operando, quase invisível ao fisco, na sombra das redes que ligam o mundo.
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O sistema de crédito social da China
Na obra “Nexus”, Yuval Harari mostra que “os Estados têm milhares de anos de experiência na tributação de dinheiro, mas não sabem como tributar informações”.
Ele cita o sistema de crédito social da China (SCS) -- em essência, um novo tipo de dinheiro, uma moeda baseada na informação -- como uma possível maneira de os Estados se adaptarem às novas condições.
O SCS é um esquema instituído pelo governo da República Popular da China para avaliar e monitorar a “confiabilidade” de cidadãos, empresas, instituições públicas e órgãos judiciais.
A ideia é estender, de modo mais amplo, o conceito tradicional de crédito (ligado a histórico financeiro e capacidade de pagamento) para incluir comportamento social, legal e de conformidade regulatória.
Em vez de um único esquema uniforme em todo o país, o SCS funciona como uma rede de sistemas -- algumas partes focadas em empresas, outras em cidadãos, outras ainda em órgãos públicos -- com diferentes práticas e níveis de implementação.
Como o sistema funciona: dados, punições e recompensas
Para empresas, por exemplo, o sistema recolhe “informações de crédito” que vão além das finanças: cumprimento de leis, obrigações regulatórias e reputação no mercado. Essas informações são armazenadas em bases públicas de dados, como o chamado “sistema nacional de divulgação de informações creditícias empresariais”.
Para pessoas físicas, em alguns projetos-piloto, o sistema já incluiu mecanismos de pontuação social: comportamentos considerados positivos (como participação comunitária, pagamento de dívidas, respeito a regras públicas) poderiam gerar benefícios; comportamentos negativos (como desrespeito a leis, inadimplência, disputas judiciais, e em alguns locais até atos de “má conduta social”) poderiam levar a penalidades.
As consequências podem atingir vários aspectos da vida cotidiana: a obtenção de empréstimos, permissões, acesso a serviços públicos, viagens, contratos de aluguel ou emprego, entre outros.
Controvérsias, realidade versus mitos e implicações sociais
Embora o SCS seja frequentemente retratado na mídia como um mecanismo absoluto de vigilância -- com uma “nota única” atribuindo valor moral e social a cada pessoa -- essa caracterização é contestada por estudiosos. Não existe, de fato, um sistema nacional com pontuação padronizada e universal aplicada a todos os cidadãos de modo idêntico.
Parte do que circula como “crédito social” corresponde, na prática, a diferentes programas locais e setoriais, além dos mecanismos tradicionais de crédito financeiro e de conformidade empresarial.
Para críticos dos direitos humanos, o SCS levanta sérias preocupações. Esse sistema conflita com princípios de privacidade, reputação e liberdade individual, sobretudo porque determinados comportamentos -- inclusive protestos, expressões políticas ou opiniões -- poderiam ser classificados como “irresponsáveis”, com consequências duradouras.
Para defensores da ordem, o argumento é que o sistema ajuda a criar “confiança social”, reduz fraudes, assegura responsabilidade, e pode tornar mais previsível e transparente a conduta de empresas e cidadãos no mercado e na sociedade.
Mitos e verdades sobre o Sistema de Crédito Social da China
Mito | Existe uma nota única para cada cidadão chinês, como se fosse um escore nacional obrigatório.
Realidade | Não há um sistema nacional unificado que atribua uma pontuação única para todos os cidadãos.
Estudos de centros de pesquisa como MERICS e SCSP constataram que o chamado Sistema de Crédito Social é, na verdade, um conjunto de projetos diferentes, alguns regionais e outros voltados apenas a empresas.
O governo chinês mantém bancos de dados extensos, mas não opera uma pontuação universal e obrigatória para cada indivíduo.
Realidade | As tecnologias de vigilância são amplamente usadas na China, mas não existe integração automática entre esses sistemas e um escore nacional de crédito social. Em algumas cidades, programas locais já testaram modelos de pontuação baseados em comportamento, mas isso não compõe um sistema nacional. A maior parte do SCS concentra-se na conformidade legal e financeira, especialmente de empresas.
Realidade | Essa imagem, popularizada por filmes e reportagens internacionais, é exagerada. A legislação oficial enfatiza comportamentos relacionados a cumprimento de leis, pagamento de dívidas, registros judiciais e obrigações contratuais. Casos de punições por condutas triviais existem em programas pilotos, mas não representam o sistema como um todo. Em nível nacional, o foco é muito mais burocrático do que moral.
Realidade | Críticos internacionais alertam para o risco de uso político, e há relatos de pressões sobre ativistas na China, mas o SCS, em sua estrutura oficial, não é formalmente definido como mecanismo para classificar posicionamentos políticos. Ele se baseia em registros administrativos, judiciais e regulatórios. Ainda assim, devido ao ambiente político chinês, organizações de direitos humanos continuam preocupadas com a possibilidade de superposição entre vigilância política e mecanismos de crédito social.
Realidade | Restrições podem ocorrer, mas dependem de decisões administrativas ou judiciais, geralmente ligadas a dívidas não pagas, fraudes ou descumprimento de ordens judiciais. Por exemplo, indivíduos oficialmente declarados como “não confiáveis” por tribunais podem ter limitações em passagens aéreas ou trens de alta velocidade. Isso decorre de decisões judiciais, não de um escore algorítmico secreto.
O que realmente existe
1. Cadastros unificados de informações regulatórias - O governo integra dados administrativos, fiscais e judiciais para identificar se empresas e cidadãos cumprem normas. É um sistema de responsabilização pública, mais próximo de um enorme cadastro público do que de uma pontuação comportamental.
2. Lista de pessoas que descumprem decisões judiciais - Chamadas de listas de “desacreditados”, vinculadas a tribunais. Há punições específicas previstas em lei para inadimplentes recorrentes.
3. Programas locais experimentais com pontuação - Algumas cidades aplicaram sistemas de pontos que premiam comportamentos considerados desejáveis. Eles variam muito e não são obrigatórios nacionalmente.
4. Sistema mais rígido para empresas do que para pessoas - A parte mais consolidada do SCS é empresarial. Empresas são avaliadas conforme cumprimento regulatório, fiscal e sanitário, e podem receber sanções administrativas ou restrições de mercado.
O Sistema de Crédito Social da China não é um único escore nacional que mede moralidade, nem um mecanismo ficção científica.
Ele é uma combinação de:
-- Bancos de dados administrativos
-- Mecanismos de transparência regulatória
-- Punições legais já existentes
-- Experimentos locais de pontuação
Por outro lado, é controverso, pois amplia a vigilância estatal e cria condições para que dados públicos sejam usados de forma restritiva ou opaca, sobretudo em um ambiente sem fortes salvaguardas de liberdade individual.