Bahia / Entrevistas

"Pacote Anticrime tem pontos positivos e negativos", diz advogado criminalista

Fabiano Pimentel é membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia

Divulgação

"O cumprimento da pena após julgamento em segunda instância foi rechaçado pelo STF", diz Fabiano Pimentel

O “Pacote Anticrime” (Lei nº 13.964/2019), proposto pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro, foi sancionado no dia 24 de dezembro, pela Presidência da República, e entrará em vigor após 30 dias da sua publicação.

O texto final da Lei, que modifica a legislação penal, processual penal e a execução penal é resultado de um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que fez várias alterações na versão original.

Para o advogado criminalista Fabiano Pimentel, professor de Processo Penal da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), doutor e mestre em Direito Público pela UFBA; membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB), do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Association Internationale de Droit Pénal e da Association Française de Droit Pénal, que foi convidado pela Câmara dos Deputados a participar do debate sobre a reforma do Código de Processo Penal brasileiro, a nova Lei 13.964/2019 apresenta pontos positivos e negativos.

1. Que avaliação geral o senhor faz do “Pacote Anticrime”?

Dr. Fabiano Pimentel - A nova legislação traz pontos positivos e negativos. O juiz de garantias é um ponto positivo da nova Lei 13.964/2019. A figura do juiz de garantias já era discutida por parte da doutrina nacional. Com a inclusão no CPP, teremos agora um juiz que cuidará das decisões cautelares que surgem no curso da investigação, tais como busca e apreensão, interceptações telefônicas, enfim, sobre todas as provas que ensejam ordem judicial na fase investigativa. Concluídas as investigações, este juiz cede lugar ao juiz da causa. Trata-se de um novo juiz, que vai decidir o mérito, sem contato direto com a fase inquisitiva do processo penal, ou seja, um juiz que não foi “contaminado”, que não foi influenciado pelas provas do inquérito policial.

2. Em que medida a manutenção da figura do juiz de garantias na nova Lei 13.964/2019 pode aprimorar o processo processual penal? 

Dr. Fabiano Pimentel – O que acontecia era o seguinte: o juiz que decidia medidas cautelares na fase investigativa é o mesmo que recebia a denúncia do Ministério Público e julga o mérito da causa, condenando ou absolvendo o réu. Isso era uma grave ofensa ao sistema acusatório. A atuação do juiz de garantias e, na sequência, de um outro juiz imparcial, que não teve contato prévio com a investigação, dá paridade de armas entre a acusação e a defesa. Ao se responsabilizar pela investigação e pela guarda dos direitos individuais, o juiz de garantia tem o papel de receber o flagrante, informar sobre a investigação, decidir sobre as prisões do inquérito, prorrogar prisões, decidir sobre provas, prorrogar o prazo do inquérito, determinar o trancamento ou não, autorizar interceptação, afastamento, busca e apreensão. E, depois de fazer tudo isso, ele cede lugar ao juiz da causa, o juiz do mérito, para sentenciar condenando ou absolvendo. Este ponto para mim é extremamente relevante, porque resguarda as garantias constitucionais do investigado. 

3. No “Projeto Anticrime” original havia pontos questionáveis?

Dr. Fabiano Pimentel - Havia ali alguns exageros como, por exemplo, o cumprimento da pena após julgamento em segunda instância, que já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal. A nova lei nº 13.964/2019 reafirma a decisão do STF, baseado no artigo 283 do Código de Processo Penal, ao dispor que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado”. Assim, reafirma-se o entendimento de que prisão só pode ser efetivada em sede cautelar ou pela sentença que transitou em julgado, ou seja, quando não houver mais recursos. 

4. Qual sua opinião sobre as mudanças trazidas pela Lei 13.964/2019 em relação à audiência de custódia?

Dr. Fabiano Pimentel - Já havia uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a audiência de custódia, mas com a nova lei o tema ganha força legislativa por constar expressamente no Código de Processo Penal. Vejamos a nova redação do art. 310 do CPP: “Após receber o flagrante no prazo máximo de 24 horas após a realização da prisão, o juiz deve promover a audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público”. Nesta audiência, o juiz deverá, fundamentadamente, decidir entre três possibilidades: decretar a prisão preventiva, relaxar o flagrante ou conceder a liberdade provisória com a imposição de medidas cautelares, tais como comparecimento mensal e utilização de tornozeleira eletrônica, ou seja, conceder liberdade ao preso mediante o cumprimento de medidas cautelares. Trata-se de importante ato processual para que o juiz possa decidir sobre a prisão em flagrante em contato direto com o preso. 

5. O senhor aprova as inovações do Pacote Anticrime em relação à prisão preventiva?

Dr. Fabiano Pimentel – A nova Lei nº 13.964/2019 acaba com a “prisão preventiva de ofício”, ou seja, para que a prisão preventiva seja decretada, deve haver requerimento do Ministério Público, do querelante, do assistente ou da autoridade policial. Outro ponto relevante foi acrescentado ao art. 312 do CPP. A prisão preventiva só pode ser decretada quando restar evidenciado o “perigo gerado pelo estado de liberdade” (periculum libertatis), e para garantir a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução, para assegurar a lei penal quando houver prova da existência do crime. Outro ponto relevante é a necessidade de revisão da prisão preventiva a cada 90 dias. Vejamos a redação do art. 316, parágrafo único, do CPP: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. Isso obriga o juiz a revisar constantemente a necessidade de se manter a prisão preventiva. 

6. A Nova Lei 13.964/2019 apresenta, em seu artigo 28-A que, não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que cumpridos alguns requisitos. Qual a sua posição sobre este ponto do Pacote?

Dr. Fabiano Pimentel - Já existem alguns acordos hoje em dia para os crimes de menor potencial ofensivo. O que a nova lei faz é ampliar essas possibilidades para penas de até quatro anos, pois antes o limite era dois. Na fase do inquérito, o Ministério Público poderá fazer um acordo de não persecução penal com o réu para que o processo dele nem chegue à sentença. A pena alternativa já existia, mas o que a nova lei apresenta é a possibilidade de ser feito de forma mais célere. Há um crescimento, hoje, do chamado “Processo Penal Negocial”. Isso já acontece na transação penal do Juizado Especial Criminal, nas delações premiadas e, agora, será ampliado para crimes com penas máximas de até quatro anos. Isso entretanto, pode ser extremamente perigoso. Nos EUA, por exemplo, há uma face negativa nesses acordos, porque há casos em que o réu faz um acordo para evitar uma pena quando, às vezes, ele é inocente. Naquele país, uma pessoa que chega à justiça acusado de homicídio, cuja pena é de 20 anos, mesmo sem ter cometido de fato o crime, pode aceitar acordo para minorar sua pena para quatro anos pelo risco de ter que ficar preso por 20 anos. Isso acontece, por exemplo, quando há dificuldade de provar sua inocência ou em decorrência do risco da ação penal. Este é um ponto negativo do “Processo Penal Negocial”. 

7. A Nova Lei aumenta o rigor no que diz respeito à fundamentação das decisões judiciais. Esta mudança era necessária?

Dr. Fabiano Pimentel - Sim, pois muitas vezes, os juízes, na hora de fundamentar as suas decisões e decretar uma prisão, por exemplo, o faziam de forma genérica: citavam genericamente a jurisprudência ou o artigo da lei sem fundamentar especificamente a decisão. A partir da sanção deste trecho da Lei, na fundamentação, não será mais possível limitar-se a indicar a legislação ou empregar conceitos jurídicos indeterminados. Não basta justificar a prisão, por exemplo, pela garantia da ordem pública, que é um conceito genérico. É preciso dizer no caso concreto porque a ordem pública foi atingida. Também não mais será possível invocar motivos que se prestam a justificar qualquer decisão. 

8. Um dos artigos controversos da Nova Lei é o 492, por afirmar que o juiz do júri mandará o acusado recolher-se preso no caso de condenação acima de 15 anos. Isso significa determinar a execução imediata da pena com um mandado de prisão? O que o senhor pensa a respeito?

Dr. Fabiano Pimentel - Minha crítica não é em relação à prisão depois da sentença, que poderia ser preventiva, inclusive. O problema é impedir o efeito suspensivo da apelação com base exclusivamente na pena. Ora, a apelação, que é um recurso, tem efeito suspensivo. Quando se condena no Tribunal do Júri, a defesa pode apresentar o recurso de apelação em plenário, permanecendo a sentença suspensa. A partir da Nova Lei, exclui-se o efeito suspensivo exclusivamente pelo quantum da pena, ou seja, aniquila-se o efeito suspensivo da apelação com base apenas na pena aplicada (superior a 15 anos). Este é um aspecto negativo da lei porque há violação do efeito suspensivo da apelação com base exclusivamente na pena, sem outros fundamentos jurídicos. Vale ressaltar que estamos falando em um julgamento de primeira instância.

9. Como o senhor avalia os trechos do “Pacote Anticrime” sobre a delação premiada?

Dr. Fabiano Pimentel - Há três pontos importantes sobre este tema trazidos pela nova lei. O primeiro é o termo de confidencialidade, segundo o qual, desde o início das negociações, o sigilo das provas e dos elementos devem ser resguardados. Os vazamentos seletivos das informações, como vimos com frequência nos últimos tempos, prejudicam o processo. A lei afirma que as partes precisam assinar um termo de confidencialidade, responsabilizando-se, inclusive, pela quebra do sigilo para as negociações da delação. O segundo ponto que destaco é a necessidade de observação pelo juiz, na homologação da delação, da voluntariedade da manifestação de vontade nos casos onde o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares, principalmente a prisão. Este é um ponto bem sensível das delações premiadas, que têm a ver com a delação do preso. A lei exige a voluntariedade, mas na prática, o que a gente vê são as pessoas sendo presas preventivamente para obter-se a prova. O indivíduo fica preso alguns meses, têm seus bens e contas bloqueados e, como isso, acaba sendo levado à delação, como uma pressão psicológica que se assemelha até à tortura psíquica. Desse modo, o indivíduo acaba realizando acordos sem a voluntariedade que seria a base do processo de delação. O professor Gustavo Badaró chega ao ponto de afirmar que se o indivíduo está negociando um acordo de delação ele tem que ser solto para delatar. A lei determina que o juiz deve avaliar se realmente a voluntariedade está sendo respeitada. Por fim, a nova lei torna mais específico o fato de não poder fundamentar medidas judiciais com base exclusivamente na palavra do delator. Esta palavra é uma prova relativa, como outras são, mas ela é ainda mais frágil porque há, na palavra do delator, um interesse de um benefício legal. Então, resta clara a impossibilidade de se condenar alguém com base exclusivamente na palavra do delator. 

10. O que o senhor acha das mudanças do Pacote Anticrime relacionados à legítima defesa?

Dr. Fabiano Pimentel - O artigo 25 do Código Penal, que trata da legítima defesa, aponta que se encontra em legítima defesa quem repele uma agressão injusta, atual ou iminente(que está acontecendo ou prestes a acontecer), utilizando-se de meios moderados (proporcionais) e dos bens necessários de que dispõe a vítima para defender a si mesmo ou a terceiros. A Nova Lei traz um parágrafo único ao afirmar que, observados todos esses requisitos, considera-se também legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão à vítima mantida refém. Isso não é um passaporte para matar, como muitos estão dizendo, porque os requisitos da legítima defesa devem estar presentes. Para mim, este parágrafo nem precisaria existir porque o fato independe do defensor ser agente de segurança pública. O que importa, na prática, é o agente estar em legítima de defesa de terceiro. Asações contrárias aos requisitos da legítima defesa, obviamente, poderão ser punidas. 

 

Sobre o entrevistado: Fabiano Pimentel, advogado criminal e Professor Adjunto de Processo Penal da UFBA e UNEB, é Doutor e Mestre em Direito Público pela UFBA; membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB), do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Association Internationale de Droit Pénal e da Association Française de Droit Pénal. É, ainda, Presidente do Comitê Gestor da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas na Bahia.