Opinião

'O que não pode ser que não é'

Em homenagem ao engenheiro civil e matemático brasileiro Newton Carneiro Affonso da Costa (1929 - 2024), verdadeiro titã da lógica

Um mantra, quase uma reza. Um caleidoscópio sonoro. Uma repetição de curtas sentenças em forma circular. Um poema sem fim.

Todo mantra consiste numa fórmula mística e ritual recitada ou cantada. Significa literalmente “controle da mente” em sânscrito e, ao ser repetido, visa a concentração e contemplação durante uma meditação.

Mantras foram criados há pelo menos três mil anos, mas não existe uma definição única, pois surgiram em diversas culturas e épocas, especialmente na Ásia. De fato, são estruturas mentais musicadas, instrumentos linguísticos harmonizados com efeitos e aplicações diversos.

Enquanto estilo, é possível criar uma música roqueira na forma de mantra.

Gramaticalmente, o nome da canção-título do grupo musical brasileiro Titãs, criado em 1982, trata de um artigo associado a um pronome indefinido sinônimo de qualquer coisa.

Em conjunto, o primeiro termo também se refere a uma partícula expletiva, sem valor sintático, usada apenas para realçar o que vier numa frase, sem mudar o sentido. Consiste num mero artifício de estilo pois, ao despreza-la, não altera o sentido do que se pretende.

O Que” foi a canção musicalmente mais trabalhada por uma das mais relevantes bandas de rock brasileiro, lançada no icônico álbum “Cabeça Dinossauro” em 1986, o terceiro, e de enorme repercussão por diversas razões, uma delas relacionada a uma rica matiz de ritmos, do reggae ao eletrônico, do punk ao rock, passando pelo funk e pop, e mesmo o hardcore.

Tal obra tinha a intenção de mostrar a dualidade entre o racional (a cabeça) e o primitivo ou instintivo (o dinossauro), tudo sob som vigoroso e característico de seus integrantes bem como de seus instrumentos musicais. Vale lembrar que o primeiro álbum foi lançado em 1984 com o singelo título que remetia ao nome da banda.

Com relação a esta obra, desde o início sempre houve uma preocupação estética com a comunicação visual, e não apenas com a sonoridade. Tanto que capa quanto contracapa foram baseados em esboços do polímata italiano Leonardo di Ser Piero da Vinci (1452 - 1519), o primeiro intitulado “expressão de um homem urrando”, “busto de um homem careca, sem pêlos, fazendo careta” ou ainda de “cabeça de um homem calvo que chora”, em exposição no Museu do Louvre.

A canção inicia com os versos: “Que não é o que não pode ser que / Não é o que não pode / Ser que não é”. O tema central, sobre a existência, sempre questionado(r), ressoa com força, ritmo, beleza e algo de lógica. A proposta musical, por usar de um mantra, chega a ser contraditória a princípio pois o rock, enquanto manifestação musical, visa transgredir ordens e harmonias. Em acréscimo à mesma canção, por representar uma obra artística da mais alta qualidade, mantem seu propósito de provocar e refletir.

No entanto, há mais contradições nesta obra musical. Em termos lógicos, conforme posicionamento do próprio autor da canção no documentário “Com a Palavra, Arnaldo Antunes” (2019), esta apresenta “uma frase lógica vazia de sentido” em sua construção. Desdobramentos transformam a canção, ao mesmo tempo que se repete o discurso racional, coerente e fundamentado.

Ao atingir o público com enorme sucesso, tal obra mudou de mãos, e tornou-se livre de intepretações, como uma canção-objeto. Mais do que tudo, a composição “O Que” trata de uma poesia concreta, logo um poema-objeto, reconhecido pelo próprio autor e por alguns dos pioneiros do concretismo brasileiro, como Augusto Luiz Browne de Campos (n. 1931), Haroldo Eurico Browne de Campos (1929 - 2003) e Décio Pignatari (1927 - 2012). Grosso modo, este movimento, iniciado em 1950, visava extinguir os versos e a sintaxe normal do discurso, dando importância à organização visual dos textos.

Há um outro notável aspecto matemático nesta canção, que pode ser observado em termos da periodicidade, tão comum em assuntos de sala de aula do ensino médio ditos trigonométricos. A regularidade do uso de mesmas palavras na composição reflete uma ciclicidade, ou seja, uma disposição dos versos em forma circular que realmente lembra um poema-objeto típico do concretismo. Tal aspecto mântrico foi reforçado na disposição circular da canção no álbum da banda: “o que não pode ser que não é”.

Em termos históricos, as raízes da lógica remontam a tempos anteriores ao filósofo e lógico grego Socrátes (c. 470 - 399 a. C.) e seus seguidores, Platão (c. 428 - c. 348 a.C.) e Aristóteles (384 - 322 a.C.). As regras racionais do logicismo são bem simples, fundamentas em proposições matemáticas, pois toda estrutura linguística deve ter regras a serem obedecidas para que seus enunciados tenham sentido e validade. Por exemplo, existe em lógica o princípio da identidade, que diz que certa coisa é.

Para ilustrar, considere a sentença: “A é verdadeiro”, onde o verbo denota tal identidade. Logo, “A” não pode deixar de ser verdadeiro, algo identificado como princípio do terceiro excluído. Este importante fundamento rege que a identidade de algo não pode ser ele mesmo e não ser ao mesmo tempo. Ao negar, um modo simplificado de dizer “não” em lógica se dá por meio de símbolos como o til (“~”). Logo, “~A é falso”. Enunciados linguísticos são permitidos a partir de tais simples regras, do tipo: “se A é verdadeiro”, “~A é falso”. E “se A é falso”, “~A é verdadeiro”.

Há outros aspectos da lógica que foram desenvolvidos ao longo de milênios, sendo um dos mais recentes atribuído ao engenheiro civil e matemático brasileiro Newton Carneiro Affonso da Costa (1929 - 2024), que desenvolveu a lógica paraconsistente, que envolve uma modificação na forma de interpretar o princípio do terceiro excluído.

Disse certa feita o poeta e escritor alemão Christian Otto Josef Wolfgang Morgenstern (1871 - 1914) na obra “Die unmögliche Tatsache”, traduzida por “O Fato Impossível”: “nicht sein kann, was nicht sein darf”; numa tradução livre, algo como: “não pode ser o que não deve ser”.O Brasil persiste enquanto um celeiro de grandes artistas e cientistas, vanguarda a contrariar a lógica por mostrar que pode ser sim o que é, e que não pode ser o que não.

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Marcio Luis Ferreira Nascimento é professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro associado do Instituto Politécnico da Bahia