LUGARES ESCONDIDOS

Igatu e Utinga: duas cidades por onde o Paraguaçu passa que parecem estar protegidas

 
IGATU 
Caminho de Pedras

Marcella Paixão

Siga o caminho de pedras e encontrará Igatu. A estrada de sete quilômetros construída à base de rochas e cascalho, montada como uma obra de arte no chão, dá as boas vindas aos visitantes. Em meio à paisagem exuberante da Chapada Diamantina, surge entre os montes a pequena vila, distrito do município de Andaraí. Tal como um museu a céu aberto, Igatu acomoda um patrimônio da Arquitetura Garimpeira pouco explorado pelos estudiosos e possui uma história não muito conhecida.

Uma das protagonistas da atividade garimpeira durante o final dos séculos XIX e XX, Igatu guarda tesouros tão grandes quanto o próprio Paraguaçu. A vila, que já abrigou cerca de nove mil habitantes nos tempos áureos, hoje possui aproximadamente 400 moradores após o ciclo diamantino. Na época, a notícia de que havia pedras preciosas na região se espalhou rapidamente e atraiu pessoas de várias partes do Brasil, até do mundo. Sem nenhum tipo de regulamentação, casas e tocas foram erguidas a partir do cascalho para hospedar novos moradores e garimpeiros.

Tal característica tão marcante e particular à vila remete à memória a cidade inca Machu Picchu, tanto que Igatu é conhecida como a “Machu Picchu brasileira”. Porém, segundo Marcos Zacariades, artista plástico e fundador da Galeria Arte & Memória de Igatu, apelidar um lugar tão original é algo um tanto quanto reducionista. “Igatu lembra um pouco a cidade pré-colombiana por causa das casas de pedra e pelas ruínas, são muito parecidas de certa forma. Mas, tirando essa forma de ser, não tem muito a ver”, afirmou.

Antônio Gonçalves observa o rio Paraguaçu

Casas de pedra estão em ruínas na Vila de Igatu. (FOTO: Beatriz Oliveira)

O Rio Paraguaçu teve muitos garimpos em toda a sua extensão e a vila de hoje é resultado desse extrativismo. Séculos atrás, antes da abolição da escravatura, os donos de engenho de cana-de-açúcar possuíam a outorga, concessão que lhes dava o direito ao uso e a interferir nos recursos hídricos. Eles mobilizaram então mão de obra escrava para fazer o trabalho de infraestrutura e para ajudar no garimpo. A maioria dos garimpeiros, entretanto, era de pessoas livres. Eles viviam em tocas construídas nas bases das grandes rochas que possuíam uma deformação vantajosa para a estadia, gerada pela corrosão da água. “O garimpeiro ia minerar toda aquela região para construir a fachada com janela e porta”. Zacariades conta como era a vida daquelas pessoas na época.

Durante o processo de extrativismo, a produção de rochas era muito grande e as construções foram feitas na cidade como uma forma de organizar o garimpo. “Fazer muros de pedras tão extensos exigia muito tempo e mão de obra. Isso era feito porque tinha que organizar, era preciso abrir espaço para as pessoas passarem e para o trabalho correr”, afirmou o artista plástico. O eixo diamantino se concentrava nas cidades de Mucugê, Andaraí, Igatu, Lençóis e Palmeiras, que se urbanizaram e chegaram a virar cidades de grande estrutura na metade do século XIX.

Antônio Gonçalves observa o rio Paraguaçu

Uma das casas mais bem preservadas é a do artista Marcos Zacariades. (FOTO: Beatriz Oliveira)

A permanência de pessoas de diferentes regiões em Igatu durante um século foi o suficiente para influenciar os costumes locais. O garimpo tornou-se parte tanto do patrimônio material quanto do imaterial. Entre os mineradores, o objetivo de achar um grande diamante, conhecido como “bamburrar” (expressão utilizada para definir o sucesso na procura das pedras preciosas), era o esbanjamento, comportamento espelhado pela referência que eles tinham do homem coronel. Entre 48 e 72 horas, o garimpeiro geralmente gastava grande parte do seu dinheiro com comidas, bebidas e mulheres. Ele era, na verdade, subjugado dentro daquele padrão social, econômico, político e cultural.

A partir da década de 70, com o esgotamento das jazidas nas serras, os donos de terra passaram a utilizar equipamentos de exploração dos sedimentos nos fundos dos rios. O uso de dragas (embarcações ou estruturas flutuantes cujo objetivo era retirar areia do fundo de rios e mares) gera intensifica os impactos negativos sobre o Paraguaçu. Unindo isso ao fato de milhares de garimpeiros praticarem o extrativismo sem medidas de recuperação do leito durante mais de 130 anos e do uso exacerbado das suas águas, tem-se hoje a degradação ambiental sentida e facilmente perceptível. Como a produção de diamantes era grande, havia muita demanda por água e toda a sua bacia serviu para esse trabalho.

Embora o impacto tenha sido reduzido com a própria recuperação natural do ambiente, os principais problemas causados são o assoreamento do rio, a perda do solo, o desvio das redes de drenagem natural, a amplificação dos períodos de seca e a aridização (situação em que o déficit hídrico se estende). É comum ter na região a transformação de rios perenes em temporários, que correm o risco de secar.

Rio assoreado pode ser visto da Vila de Igatu. (FOTO: Beatriz Oliveira)
 

Zacariades é soteropolitano, mas foi em Igatu que ele encontrou seu refúgio. Com a proposição de resgate, proteção e salvaguarda da história local e do patrimônio, ele fundou a Galeria Arte & Memória de Igatu. Durante a procura de um local de descanso para quando se aposentasse, o artista conheceu a vila mergulhada em pedras. No momento em que o baiano criou a Galeria, pensou em fazer algo que impulsionasse e interferisse positivamente na vila. “A primeira coisa que eu queria era que estivesse ligado às raízes de Igatu, que dialogasse com a história da região. A outra era que eu queria trazer a arte para cá”.

Apesar de Igatu fazer parte do Parque Nacional da Chapada Diamantina e de ter muita importância para a história do Brasil, poucas pessoas já ouviram falar sobre o lugar. Quando se fala nas serras localizadas no centro do estado baiano, os olhos se voltam mais para o turismo de aventura de Mucugê e de Lençóis, por exemplo, e para as belezas naturais do que para a história e o turismo cultural. O patrimônio de Igatu acaba por exigir um olhar diferenciado e preservacionista do conhecimento, de percepção e conscientização da história, assim como do processo social ocorrido.

É no Parque Municipal de Igatu onde está todo o acervo das ruínas garimpeiras. A ideia de Marcos é preservar a história e levar para a região um turismo cultural voltado para o reconhecimento do patrimônio. Dessa forma, segundo ele, a prática turística vai se dar de forma mais respeitosa.

Ponte sobre o rio Paraguaçu na cidade de Andaraí (FOTO: Beatriz Oliveira)
 

Já Andaraí, mãe de Igatu, possui particularidades muito específicas. O aspecto pacato e tranquilo da cidadezinha com pouco mais de 13 mil habitantes reflete a calmaria do lugar. O chão de pedras, as casas coloridas e o céu azul aconchegam os visitantes. Na Cachoeira da Donana, o viajante mergulha no rio cor de cobre, como são as águas do Paraguaçu neste trecho, em um banho revitalizante. Segundo Renata Silva, microempresária, os visitantes são atraídos de temporada em temporada.

Conhecer a vila de Igatu é aprender com a história. Lá, a exploração do meio ambiente sem qualquer medida de recuperação danificou os rios vitais para a sobrevivência dos seres vivos. Se na vila os impactos foram irreversíveis, em Utinga, município com mais de dezenove mil habitantes e separado por pouco mais de 100 km de Andaraí, o trabalho discreto, mas poderoso de recuperação das margens do rio Utinga feito pelos índios payayás possui uma importância muito grande para a região.

O índio Otto Payayá em frente ao rio Utinga. (FOTO: Beatriz Oliveira)
 

Guardiões e filhos das águas, os índios payayás sempre viveram no entorno dos leitos e das nascentes dos rios, na região da Chapada Diamantina. Onde havia nascente, existia uma aldeia. Porém, no ano de 1530 em Cachoeira, durante a colonização, houve o primeiro confronto entre os povos tradicionais e os portugueses. Assim como em Salvador houve confronto e dizimação, em Utinga não foi diferente.

O que poucas pessoas sabem é que por pelo menos três vezes o governo perdeu no confronto com os índios e que, com a derrocada, mandou eliminar os povos, contou o pajé Otto Payayá. Neste conflito, foram destruídas seis aldeias e um dos grandes líderes foi morto. De 1.500 homens que foram levados para Cachoeira, apenas 500 chegaram vivos. Atualmente, dentro da comunidade vivem cerca de 30 famílias em Utinga. “Nós somos quem sobrou do desmando do governo no vale de Utinga. Dentro da Chapada Diamantina, a grande maioria das famílias antigas e tradicionais são descendentes dos payayás”.

Para o pajé, preservar o rio, as florestas e os animais é preservar a história do seu povo. “Onde tinha nascente tinha índio. Então, se eu luto para que as nascentes continuem vivas, eu estou reafirmando a história do meu povo. Meus filhos e netos vão contar essa história, assim como eu conto as histórias dos meus pais, avós e bisavós que viviam nessas lagoas. Mesmo depois que eu fizer a minha passagem, eu vou continuar vivo através da minha família”.

“Nós somos natureza e sempre fizemos parte da natureza. Essa preocupação em conservar e manter é uma coisa que fazemos naturalmente. É o nosso caminho”
-- Otto Payayá, pajé --

Índio Payayá observa o rio Utinga. (FOTO: Beatriz Oliveira)Apesar da dificuldade por causa da ausência do direito da posse de terra, os índios exercem com esmero um trabalho de preservação das margens do rio. É uma tradição, um comportamento passado dos pais para os filhos, de geração para geração, conta Otto. Desde muito novo, ele assistia a mãe plantar árvores em vários locais diferentes. A preocupação em conservar e manter é algo feito com naturalidade. “Nós somos natureza e sempre fizemos parte da natureza. Essa preocupação em conservar e manter é uma coisa que fazemos naturalmente. É o nosso caminho”.

Os payayás se preocuparam muito em ter um viveiro de mudas porque sabiam que isso, além de ajudar na recuperação do leito e do entorno do rio Utinga, iria beneficiar as outras propriedades. Dentro desse viveiro, eles começaram a produzir uma variedade de plantas nativas da região e a plantar no entorno da nascente. Para dar apoio à comunidade, começaram a comercializar as mudas. “As pessoas não possuem o hábito de recuperação do meio ambiente. A lei diz que é preciso recuperar sua área de terra, mas não faz fiscalização. A única preocupação é com o bombeamento de água para produzir toneladas de produto”. Segundo ele, vários problemas foram gerados porque muitas pessoas não enxergam o rio como um aliado.

Antônio Gonçalves observa o rio Paraguaçu

Barragem do rio Utinga. (FOTO: Beatriz Oliveira)

Otto Payayá se baseia no que ele sente. “O rio tem que correr no leito dele, uma pessoa não pode represar as águas e bombear para ele mesmo, tem que haver uma administração dos rios da Chapada Diamantina. Deveria existir, na verdade, uma política séria. As pessoas deveriam obedecer um limite e não passar disso”.

Para Otto, a solução não é construir barragem, mas sim distribuir muito bem a água a ser utilizada. Foi por causa da barragem de Pedra do Cavalo, em Cachoeira, que uma parte da cidade de Cabaceiras do Paraguaçu se viu mergulhada nas águas do grande rio.

As águas agora nos levam para um lugar mais distante, já no Recôncavo Baiano. A próxima parada é na cidade de Cabaceiras do Paraguaçu, onde o rio serviu de berço para um dos maiores poetas do Brasil.