Pessoas dançando no paredão

Mulheres no Pagode Baiano

É bunda no paredão que fala, né?

por Beatriz Almeida, Giovana Marques, Joyce Melo, Tainá Goes

A potência é incalculável, o alcance surpreendente, o mar de gente que acompanha chega a ser assustador, mas a diversão contagiante é o que faz o povo não querer ir embora. O que antes era conhecido apenas por uma pequena concentração de carros na rua com a mala aberta e o som ligado, hoje tem uma estrutura organizada, frequentadores assíduos, artistas que almejam ter sua música tocadas ali e mais, um nome próprio: PAREDÃO.

O termo que deu vida a uma das festas populares de Salvador e que também abriu portas para as pagodeiras, sejam cantoras, dançarinas ou apreciadoras, parece ter chegado de mansinho, surgindo aos poucos e conquistando o público, mas a realidade é um pouco mais antiga. Há quase 40 anos, no Pará, as festas de aparelhagem tocando merengue e, um poucos mais a frente, o brega paraense, deram os primeiros indícios do que se tornaria o paredão. O tempo passou e a ideia do empilhamento de caixas ao ar livre ganhou o gosto popular e em 2000 ficou mais conhecido, no Nordeste, com o ritmo pagodão.

Paredão automotivo

Com a evolução da festa, a aparente bagunça de carros espalhados na rua já não era mais suficiente para acalmar o desejo do público e a coisa então ficou maior. Ganhou as alturas, literalmente. Há paredões que chegam a três ou quatro metros de altura, com luzes neon que conseguem ser vistas a uma distância inacreditável. Os aparelhos de som têm capacidade de emitir em torno de 120 decibéis, ultrapassando até o que seria considerado um estresse leve na audição pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, como se diz em Salvador: o bagulho ficou louco! Mas, de forma alguma, isso impediria os frequentadores assíduos de colocar a bunda no paredão, afinal, apesar da evolução da parte técnica e estética, a cultura periférica e a democratização da música popular, de rua, que são efervescentes na festa permanecem intactas nesta trajetória.

A união de versões e batidas, que reunidas conseguem expressar a cultura pulsante nas periferias de Salvador, deixava claro que iria atrair uma legião de fãs. E, vamos combinar, não seria para menos. Concentrar essa cultura - ainda marginalizada - da música de rua, que é protagonista desde debates acadêmicos sobre classe, gênero e raça até conversas informais de ‘mesa e bar’, e fazer desse ambiente um popularizador de expressões culturais com um jeitinho convidativo de quem diz “se quiser, pode chegar”, torna o paredão um verdadeiro caso de sucesso.

Você nunca foi, não sabe como é? Ou já foi, mas quer dar uma lembradinha? Mexa seu celular, ou se estiver no PC pegue a mãozinha e entre rapidamente num paredão:

Para Luis Cláudio Araújo, conhecido na cena musical do pagode como Kal Araújo, cantor e dono da casa de show Vila Kall (@vila_kall), “o paredão não é coisa de ladrão, o paredão é cultura”. Seu espaço que fica no bairro de Pirajá, frequentemente abre as portas para os empilhamentos de caixas de som e já recebeu artistas como A Dama do Pagode e A Rainha. Kal conta que o pagode é o ritmo que mais gosta de produzir nas suas festas e completa dizendo que o sucesso dos paredões é crédito dos jovens e da cultura da periferia, que é “quem faz a festa acontecer”.

Ao falar sobre as dificuldades de ser dono de um espaço onde acolhe uma diversidade de pessoas e também um ritmo, ainda visto com “maus olhos”, ele fala que o maior problema, na verdade, foi com a SUCOM (Superintendência de Controle e Ordenamento do Solo do Município). “A maior dificuldade foi com a Sucom, mas hoje tem um secretário e vereador chamado Felipe Lucas (MDB) que é um cara que gosta de música e cultura, e eu mostrei o alvará que a casa tem documentação e que aqui tem muita gente boa. Eu provei pra ele que eu tinha alvará, documentação, segurança, apoio da comunidade e que os bagunceiros saíram todos”, expressou Kal, com um tom de orgulho.

Também orgulhosa do trabalho que desenvolve na cena do pagode baiano, a produtora musical Carol Abdala, da Apache Abdala Produções, em entrevista no programa Mulher na Cena do Projeto Pagode Por Elas conta como construiu sua carreira, desafios, conquistas e percepções sobre o cenário soteropolitana. Ouça:

É só para VER as gostosas empinarem o rabetão, de boa?

Em Salcity nenhuma fama passa intacta de problematizações. Com os paredões não seria diferente. Majoritariamente comandados por homens e carregando o estigma de tocar músicas que colocam a mulher no lugar da “piriguete”, questão da regionalidade soteropolitana, a festa está imersa numa série de questionamentos sobre ser, ou não, um ambiente em que mulheres possam se sentir seguras. A estudante de 15 anos, Bruna Bispo, conta que já foi ameaçada de morte e é assediada frequentemente. “Eu vou, mas aquele negócio, a gente jovem, que dança música baixaria, no caso pagodão, é criticada. As mulheres de traficante não gostam de ver, é aquele ditado ‘a pessoa quer ver você bem, mas não melhor que ela’, se uma pessoa vê você dançando, ela não vai querer que dance mais do que ela porque o namorado dela vai olhar mais pra você”. Bruna ainda desabafa:

“Quando eu vou pra paredão eu sempre sou ameaçada, por isso eu sempre falo que sou lésbica e tenho namorada. Os homens não respeitam as mulheres e acham que as mulheres estão ‘fretando’ por causa da dança.”

Mulheres dançando pagode no paredão Mulheres dançando pagode no paredão

Segundo estudiosos como Danutta Rodrigues e Clebemilton Nascimento, desde o princípio o espaço ocupado pela mulher no pagode está associado à sua figura como objeto de desejo. Portanto, o corpo feminino sexualizado, no paredão, é a representação da mulher como forma de mimo para os homens que frequentam a festa só na espera de que “as gostosas” empinem o rabetão para o seu bel-prazer, os também chamados bagunceiros por Kal Araújo. Aqueles que enquanto deveriam estar se divertindo, estão mais preocupados em ser fiscal de bunda. Mas, parece que para tudo há uma luz no fim do túnel.

Questionado sobre a segurança das mulheres na sua casa de show, fiscalizada pela Rondesp Central, Kal largou o doce: “Ás vezes acontece alguns episódios aqui, como em qualquer casa de show acontece, com pessoas que querem procurar briga. Aqui tem policiamento na casa, então assim, se não andar de acordo com as normas que é respeitar a mulher, respeitar o espaço, o ambiente … (silêncio)... vamo aceitar e saber respeitar, direitos iguais, então a casa tem segurança sim, do portão pra dentro a Vila Kall assume, do portão pra fora é o Governo do Estado”. Brinque, vá. Paredão não é bagunça!

Outras frequentadoras, como a estudante de 16 anos, Roseana Santos, afirma que normalmente acontecem situações que ela nem sempre gosta, e que já foi assediada em uma das festas. “Eu cheguei a discutir com um homem, é bem desconfortável essa parte”. A adolescente completa a fala dizendo que o pagode é parte do baiano e da periferia, o que faz com que o paredão também seja, mas apesar de gostar de dançar e da curtição, a melhor parte mesmo é quando se sente bem entre os amigos. Já para Raiane Ferreira, 20 anos, diretora da promotoria de eventos da Inocente Produções e dançarina nas horas vagas, o paredão é um espaço seguro e não há nada que a incomode. “Assédio nunca passei, tipo, eu passo, alguém fala alguma coisa, mas o normal pelas roupas, eu acho normal. Me acho segura demais, não ligo com alguém falando alguma coisa” esclarece ela com tranquilidade.

Elas metem dança. Você goste ou não!

Enquanto lê o texto, você se perguntou se existe outro lado nessa história? Pois saiba, existe! A versão em que as mulheres saem do lugar imposto de objetificação e passam a ser as protagonistas e donas de seus corpos. Elas criaram uma contra narrativa para momentos de inseguranças e começaram a dominar os paredões. Para essas mulheres, o paredão é o auge!

Como para Evelyn Santana, 22 anos, e dona do paredão automotivo Santana Paredão (@_santanaparedao). Mas, pera, uma mulher? Sim! A estudante de arquitetura conta que sempre teve som dentro do carro, mas depois de um paredão em Retirolândia, na festa de São Pedro, ela decidiu aumentar a aparelhagem e montar o dela. “Engatou no carro já está pronto pra ir pra qualquer lugar”, garante Evelyn. A dona do Santana Paredão ainda completa: “Rapaz, a melhor parte é quando você tá numa festa e todos estão ali curtindo o seu som, dançando o que você coloca pra dançar, e sempre estou ali no meio também, me divertindo com todos”.

Aí, as “más línguas” perguntam: uma mulher com um som assim no carro? Acredite! Ela continua dizendo que muitas pessoas acham a ideia diferente e muito legal e, inclusive, sempre perguntam sobre quais aparelhos usar, além de achar impressionante ela estar por dentro do mundo de som automotivo.

“É diferente mulher ter som e ter um paredão então (risos), mais é uma boa, quero poder servir de exemplo pra muitas e mostrar que se homem pode porque mulher não vai poder. É um diferencial e que pode servir de exemplo e mostrar que as mulheres podem estar em qualquer lugar, basta querer!”

Experiências como as que a promotora Rayzona (como é conhecida no mundo de influenciadores do pagode baiano) vivencia, faz com que não se preocupe com homem nenhum. A moça frequenta paredão desde os 12 anos, quando ia com a mãe, e hoje coordena um grupo de mulheres que divulgam paredões e festas de pagode, e ainda diz: “O pagode é tudo, se acabar o pagode acabou o mundo, é o meu ritmo favorito”. Ah, pensou que para por aí? Tem mais!

“O paredão é tudo de bom, paredão é lama, todo final de semana eu vou pra paredão, tô sempre presente. A melhor parte é a dança, as bebidas”. Ela ama mesmo!

Não é só Rayzona que tem essa relação com os paredões. Muitos fãs que participam da festa e até mesmo aqueles que apenas ouviram boas histórias e têm vontade de “dar um pulinho” só pra ver, também têm memórias e imaginários positivos do pagode da favela. Como comprova a pesquisa feita pelo Projeto Pagode Por Elas, na qual de 623 pessoas, sendo 75,3% mulheres cisgênero, 31,6% já foi em um paredão e pelo menos 22,6% nunca foi, mas gostaria de conhecer. Inclusive, para os que ainda não conhecem, a estudante Bruna, citada acima, que vai para o paredão todo final de semana desde a sua primeira experiência aos 13, diz ser bom demais e, se pudesse, iria todos os dias. Isso que é recomendação!

Apesar das ameaças que sofre constantemente, ela afirma não se importar. “A melhor parte é chamar atenção de todos e todo mundo olhar pra mim. Desde de criança eu ficava no poste dançando, desde pequenininha eu já escalava e hoje qualquer abertura que vocês me pedirem eu tenho. Quem dança por amor, sabe como é, maravilhoso você tá dançando e tá todo mundo olhando ‘ó pra lá que menina’”. A estudante ainda conta, com um sorriso, que para ela mesmo com todas as críticas, ainda que sejam negativas, quando ela faz o que ela gosta é maravilhoso. E, destemida, fala:

“Paredão é amor”

Não para não! Essa articulação tem tudo para ser ainda maior. É uma reviravolta de novela o que essas mulheres constroem pouco a pouco na história do pagode. Este é aquele momento que o fim da cena congela em preto e branco e todos ficam ansiosas para os próximos capítulos. E se você chegou até aqui, porquê não continuar acompanhando a trajetória dessas mulheres no pagode? Ouça os podcasts, a playlist, veja a minissérie e, acompanhe o projeto @pagodeporelas, no Instagram.


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