Mulheres no Pagode Baiano
por Beatriz Almeida, Giovana Marques, Joyce Melo, Tainá Goes
Donas. Antes de qualquer coisa, das suas próprias vidas, dos seus corpos, capacidades e talentos. As pagodeiras nunca brincam em serviço. Os movimentos sensuais cheios de coordenação hipnotizam, afinal, elas sempre foram diferenciadas. E mesmo que o meio musical ainda não as tenha reconhecido e legião de fãs se formado, cantoras de pagode baiano existem e estão tomando espaço. As histórias que iremos conhecer revelam as novas vozes potentes e múltiplas do ritmo soteropolitano. “Mete mão” na playlist que preparamos para você ouvir durante a leitura dessa reportagem e conhecer as donas da zorra toda do pagodão:
O sonho era subir no palco e poder usar sua voz no microfone como arma. Atirar versos capazes de consagrar o swingue depositado na sonoridade de uma mulher negra soteropolitana. O frequente não a deixava “no ódio”, mas nunca faltou na dona dos paredões o sangue no olho para alçar voos altos. Aclamada pelo público do pagodão baiano, sua meta é se tornar a primeira pagodeira nacionalmente conhecida.
Aaaai, paaai… se você quis continuar com pirraça, o pagode baiano desta cantora deve estar batendo no seu paredão.. A Dama do Pagode (@adamadopagode) é a dona deste hit e tem sido “O Pesadelo dos Homens”, como intitula em seu CD, lançado em 2018. Allana Sarah é o nome de batismo da mulher que tem se destacado na cena do ritmo. Quatro CDs no YouTube em menos de dois anos, agenda fechada com shows por todo estado e, principalmente, sua música na boca da favela foram alguns dos marcos alcançados pela cantora.
Os hits do ritmo mais tocado nas periferias estão começando a ganhar uma versão cantada pelas donas da zorra toda, por baianas que através do pagodão querem arrastar multidões em cima do trio elétrico, e fazer todo público METER DANÇA NOS PAREDÕES.
“Ainda existe muito preconceito! Nos próprios paredões, sabe? Então, a galera empurra mais homens, essa coisa de homem, só homem, mas quando curte um show meu, muda logo de ideia”, afirma Allana entre alguns risos que refletem orgulho pela sua própria caminhada. “Tudo é no tempo de Deus, tá escrito lá [aponta para o céu], eu não vim pro mundo cheia de talento pra passar em branco, tô chegando lá, só ter paciência e fé”, complementa a artista que registrou no próprio corpo, através de tatuagens, o amor pela música e a crença no candomblé, sua religião.
O corpo e a sensualidade marcam o groove e as coreografias das letras compostas pela Dama do Pagode. Muitas vezes vistas de forma vulgar, composições não pertencentes à chamada música limpa. “Na verdade, as minhas músicas têm a putaria? Têm! Mas, se você ouvir e entender, elas sempre botam as mulheres lá em cima. Mas, tem que ter a putaria pra galera gostar. E por ter putaria a galera faz aqueles comentários ‘você mulher cantando uma coisa dessa?’. Só que na hora de praticar todo mundo pratica”, afirmou Allana.
E se por um lado a sexualidade é tema principal, por outro, versos como “meu corpo é livre, tocar cê não vai” ganham lugar na swingueira. Estas novas vozes indicam, como dizem os soteropolitanos, grandão e sem medo de nada, que as mulheres estão metendo os dois pés na porta e tomando espaço no ritmo que por muito tempo não as aceitava como protagonistas.
Sons de liberdade, batuques expressivos e letras que revelam representações dos desejos sexuais, pessoais e transgressores das mulheres. O pagodão baiano é o cerne cultural que movimenta a cidade de Salvador, contudo, a terra fértil, mãe do ritmo, não viu nascer desde o seu início, lá na década de 1990, uma grande estrela feminina protagonista da cena.
As “piriguetes” sempre dominaram os shows e paredões, mas só agora começam a se ver nos holofotes principais dos palcos e à frente das bandas. O swingue gostoso e a pegada diferenciada da Dama do Pagode vêm conquistando um espaço não apenas de relevância, mas representa a esperança do enfim reconhecimento feminino na cena da trilha mais tocada nas periferias de Salvador.
“Ninguém acredita na força de uma mulher percussionista”, afirma Fernanda Maia (@n4nda_71) ao contar sua experiência no meio musical. Ser a única mulher numa banda que tem como inflûencia principal o ritmo do pagode, fora do posto de dançarina ou back dance, não é algo comum, mas foi o que ela fez, através das suas batidas precisas e ritmadas, Fernanda começou sua carreira no grupo Afrocidade. E foi nos shows de verão de 2019, após cerca de seis anos de criação do projeto, que a única mulher, até então apenas percussionista, tomou os vocais e lançou um som capaz de embalar todo o público.
O groove do pagode ‘batendo certo’, misturado a outros ritmos e com uma pitada de letras politizadas é a marc A primeira música protagonizada por Fernanda não foi diferente. Apesar de sempre ter fugido desse lugar de destaque, quando o momento chegou ela não decepcionou. A presença de palco é marcante nesta mulher que se diz “muito tímida, apesar de não parecer”. Voando alto, a banda já fez apresentações em Londres e em diversos estados do Brasil.
Dedicação e vontade de fazer a diferença no pagode baiano são as pílulas diárias da Rainha do Pagofunk, Rai Ferreira Com cerca de oito anos de trajetória, integrou participações em músicas de artistas como Robyssão e Os Africanos, inclusive, cantando a música Recalcada (2014) e a música Bolseta (2014).Há dois anos, ela foi a primeira mulher a se jogar na cena da vertente que ficou conhecida como pagofunk, ou seja, o bom e velho pagodão, mas com referências do funk carioca.
A artista que iniciou sua carreira como vocalista na banda A Madame, afirma que não se deixa abalar pelas críticas, pois percebeu que em qualquer área muitas conquistas feitas por mulheres são ofuscadas pelo corpo, tornando os méritos menos relevantes do que seus peitos, sua roupa, seu batom etc. Além de ser a “Mamãe do Pagofunk”, a Rainha também concedeu uma vida: o nome dele é Rayan Diego, e até mesmo na barriga, viajou pelas estradas da Bahia e pulou de um palco a outro. Com sua primeira banda musical A Madame, Rai lançou o clipe da música “Lento” e alcançou a marca de 2 milhões de visualizações.
Castelando sobre história, tempo e trajetória longa, vamos falar de Aila Menezes (@ailamenezes), que em alto e bom som afirma “eu fui escolhida pelo pagode”. São 12 anos na cena, e não 12 dias. Se você é baiano com certeza ouviu, nem que seja tocando na casa do vizinho A Revolta 2, música interpretada pela cantora, como réplica à música A Revolta (2011) de Tony Salles, quando cantava no Raghatoni. O verso “Mas veja, quando ele chega em casa cheio de cachaça, com aquela murrinha, pensando em fazer amor na cama, na sala, agarrar na cozinha, ai que eu quebrei o pau” foi sensação da época.
Com sete anos, ela dançou a famosa Na boquinha da garrafa no show de Daniela Mercury, e daí em diante seguiu a paixão pelo ritmo. Em 2007, montou a banda Afrodite que migrou pouco tempo depois para a banda Groove de Saia. E, através desse grupo musical, lançou canções muito conhecidas como “Maromba, maromba, cuidado com a bomba. ADE, ADE [medicamento de uso vetenário usado como anabolizante], pra pegar mulher”. Esse refrão foi chiclete e a música ainda fazia um alerta aos homens sobre os riscos do uso de anabolizantes. Fica até difícil explicar o fato de Aila Menezes não ter “estourado” nacionalmente, como tantas bandas masculinas.
No ano de 2019, Aila tem realizado o Baile de Todas as Cores, uma vez no mês, no Pelourinho. Além dos seus shows performáticos, o baile é aberto com DJ e tem a proposta de ser inclusivo e respeitoso com todas as formas de manifestações corporais. Na edição de outubro, a artista convidou outras quatro mulheres que fizeram e fazem parte da cena do pagode baiano e do samba, Daiana Leone, Jady Girl, Tacila Almeida e Ravanna Rodriguez.
Incansável e apaixonada, certamente, são algumas das palavras que traduzem essa artista, e ela nos contagia através da sua certeza: “a mulher pode e vai ocupar um espaço de representatividade nacional”. Vocalista, produtora e empresária independente, Aila Menezes, entende que o “pagode ainda é muito marginalizado, assim como o funk no Rio de Janeiro”, mas permanece fazendo suas músicas e shows.
E, aproveita para passar a visão: “acham que [o pagode] é um ritmo que não tem valores, mas muito pelo contrário, o pagode é um dos ritmos mais difíceis de serem tocados, que mais exige groove de uma banda, conexão e percepção musical”, e complementa, “costumo dizer que o pagode não é um ritmo, é uma bandeira, é uma conotação de vida. Quem compreende a linguagem do pagode são pessoas que vivem, de certa forma, aquilo na pele. O pagode te escolhe, ele fala sobre diferença social, racial e grita os incômodos da sociedade. O pagode é um ritmo extremamente dançante e convidativo e que fala muito de tudo e de todos", e Aila continua:
"Pagode é a raiz do nosso povo”
Simpatia, um sorriso iluminado, capaz de fazer brilhar todos os cantos, com seu canto grave, mas suave, potente e equilibrado. Daiana Leone (@cantoradaianaleone), a vocalista da banda Swing de Mãe, com apenas 21 anos de idade, já está há quatro anos comprometida com sua carreira musical, e há um ano fiel apenas ao pagodão baiano. Começou menina, ainda no ensino médio, quando fez no Colégio Estadual Manoel Novaes seu curso técnico de música e com seus colegas de turma, formou sua banda, inicialmente para cantar samba de roda. “Nos voltamos totalmente para o pagode, em agosto de 2018, por ter falta de mulheres representando esse ritmo que todos da banda sempre ouviu e sempre gostou”, explicou Daiana.
Já que referência é tudo, vale ressaltar, os pais da artista também são cantores, e influenciaram seu caminho no ritmo, versos e tons. Por isso, o nome do grupo é Swing de Mãe, uma homenagem à sua mãe, que prefere ser chamada apenas de ‘Nêga’. A música de trabalho Chama as Amiguinhas já tem clipe produzido rodando no YouTube e a artista, que realiza sua produção de forma autônoma e independente, garante que novos hits estão por vir. Mas, enquanto isso, pode chamar as amiguinhas pra descer até o chão.
As batidas do coração de Cida Ramos (@apoderosaofficial), vocalista da banda A Poderosa, certamente seguem a frequência dos instrumentos que se misturam para gerar a gruvadeira do pagodão. Aos 12 anos, Cida já se iniciava nesta cena musical tocando guitarra numa banda de pagode, e foi com cerca de 15 anos que a oportunidade de seguir uma carreira como vocalista de pagode surgiu e ela agarrou.
“A Poderosa Rainha da Putaria” é como tem ficado conhecida devido às suas músicas de duplo sentido e sua performance no palco. Com apenas 19 anos, ela já possui conquistas realizadas através do pagode, sendo uma delas, a propriedade de uma casa de eventos em Camaçari onde a swingueira rola solta.
Mulher cantando pagode é algo que a artista entende como difícil até hoje. Ela lembra da quantidade de vezes que pediu para fazer participação em shows e os cantores não deixaram. “O mundo é uma bola né, e hoje as mesmas pessoas que menosprezaram fazem participação nos meus eventos”, disse Cida. E completou: “eu pretendo ir bem mais longe. Não é ganância não, mas quero conquistar o topo, só preciso ter foco e fé para alcançar os meus objetivos”.
Direto da graduação em direito para a música, Larissa Marques (@larissamarquesoficial) sentia nas veias a vibração do pagode, mesmo tendo iniciado a carreira na música sertaneja. Há quatro anos atuando como vocalista e um como cantora de pagode, já lançou o seu primeiro disco, o #MulhernoPagode, repleto de swing, quebradeira e com músicas totalmente autorais.
A artista percebe o preconceito como um grande desafio para o surgimento de uma estrela feminina no pagodão baiano, mas garante: “é o melhor [desafio] que já vivi”. E, apesar do “barril dobrado” que é cantar um ritmo marginalizado e majoritariamente masculino, Larissa não tem dúvidas que as brabas [mulheres] estão chegando e representando muito bem no groove. Não existem barreiras físicas e nem mesmo geográficas para Larissa que deseja ver seu brilho alcançar não só o Brasil, mas todo o mundo e tem como referência a cantora Anitta, conhecida internacionalmente através do funk. “Eu sempre tive o ranço, sempre amei dançar pagode, sempre batucava, só faltava mesmo me assumir. Enfim, tomei coragem e fui”, contou Larissa Marques.
Maya (@soteromaya) é a menina que versa em sua música Melanina, os encantos das mulheres pretas vindas das periferias de todo lugar, de Periperi à Cajazeiras. Assim como para grande parte das soteropolitanas, a referência do pagode baiano sempre foi muito forte para ela, portanto, cresceu gostando do groove, mas insatisfeita com as composições. Maya Fernandes percebe as letras como elemento fundamental na música, por isso passa por todo processo de viabilizar seu trabalho como cantora. Ela se coloca numa versão mais politizada do pagode e foge da música baixaria. Em entrevista feita no programa Estúdio Livre do Projeto Pagode Por Elas, com muita música, descontração e simpatia, Maya fala sobre suas vivências, percepções e, também do seu artigo “Corporeidade Feminina no Pagode Baiano”. Ouça:
No YouTube é possível acessar esse hit delícia de ouvir, vencedor em 3º lugar do troféu MUSA (Festival de Música Universitária de Salvador), na categoria música. Essa iniciativa foi impulsionadora para que Maya desse os primeiros passos em rumo ao pagodão. “Quando eu ganhei com a música Melanina, eu fiquei pensando porque não investir no pagode, eu sei que é uma cena em crescimento, que não tem muitas mulheres. Mas eu quero, e também fiquei pensando que gostaria de fazer música de pagode e não falar só de baixaria, que fosse uma música de pagode, que você quebre, balance sua raba, seja feliz, sou plena ali, mas não necessariamente está ali só com a putaria”, compartilhou Maya.
Recém iniciada como vocalista de pagode baiano, Bibi Bombom (@bibibombomoficial) formou sua banda A Heroína em agosto de 2019, lançou música de trabalho e já tá nas grades de alguns eventos em Salvador. Com 25 anos de idade, a então dançarina de quadrilha junina, aceitou encarar o desafio de cantar na banda porque a proposta não envolvia interpretar músicas que desvalorizassem a mulher. E disse sem medo de errar:
“Ser mulher no pagode é desconstruir que só homem tem pegada para esse ritmo que há 3 décadas vem se mantendo vivo”
As redes sociais, sites e jornais têm sido as principais armas para a Heroína fazer seu som ecoar e ganhar espaço mesmo com pouco tempo de atuação. Seu desejo é representar nacionalmente o pagode baiano levando um sabor diferenciado, como é considerado o dendê, e performance inédita, assim como o talento do soteropolitano.
Projeto audiovisual produzido a partir das experiências das vocalistas Dama do Pagode, Fernanda Maia, Daiana Leone, Rai Ferreira e Aila Menezes: