A voz é um dos elementos da linguagem que complementa qualquer conteúdo que faz parte de uma cultura e contribui para a propagação da comunicação. Harry Potter, como diversas outras franquias cinematográficas, aproveitou de elementos locais para facilitar a compreensão do público sobre uma cultura diferente. O sotaque carioca, que faz parte das vozes dos personagens, é um dos elementos que regionalizou o universo bruxo no Brasil.
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No começo da década 2000, Harry Potter foi uma das franquias cinematográficas que mais ocupavam a faixa de cinema durante a programação das emissoras de tv e também por conta da limitação tecnológica, exibiam o conteúdo com a dublagem em português do Brasil. Diversos fãs, que no lançamento dos filmes, tinham idades entre seis a nove anos consumiram o conteúdo dublado e que para eles os identificavam com aquelas vozes.
A comunidade de fãs até hoje ainda prefere assistir a franquia com a voz dublada em português, pois a fazem remeter a nostalgia. Além disso, se criou um hábito colétivo que envolve a afetividade com os dubladores que fizeram parte do elenco original de Harry Potter. Todo o elenco que participou da produção da franquia ao mesmo tempo são vistos na comunidade como os atores principais.
A estudante de jornalismo Flávia Alessandra assistiu ‘Harry Potter a Pedra Filosofal’ durante a exibição do filme na TV. Para ela se tornou costume ouvir as vozes em português.“Eu acompanhei todos os filmes dublados, mas às vezes eu vejo em inglês apenas para treinar pronúncia”, conta.
Outro ‘potterhead’ que também consome filmes dublados é o marítimo Everton Lima, de 21 anos, que conheceu a franquia durante a exibição do primeiro filme, na ‘Seção Especial de Cinema’, exibida pela SBT, quando ele tinha 9 anos de idade. Para Everton, durante a infância, ele nem sabia da existência da voz original dos personagens, tanto que para ele, só depois na adolescência soube da existência da voz original.
“Eu prefiro assistir Harry Potter dublado, por uma questão de costume, por quê nos fãs já sabemos até quais são os diálogos dos personagens do filme”, complementa.
A relação com a dublagem é algo presente no seu cotidiano, para Everton, ele é possível perceber quando um dublador de Harry Potter aparece em outro trabalho tanto no cinema quanto em uma animação. “A voz da Luísa Palomanes me marcou bastante, além de Harry Potter a voz dela aparece na participação no desenho ‘Avatar: a Lenda de Aang’, explica.
Imagens: arquivo pessoal/ Luísa Palomanes
O outro ator que também viveu essa magia é Charles Emmanuel, conhecido por ter dublado o Ruppert Grint, o Rony Weasley. Charles entrou na dublagem através da mãe, a dubladora Teresa Anquetin. O começo na profissão se deu com pequenas participações em vozes em filmes durante a infância. O teste para o primeiro filme de Harry Potter aconteceu aos 12 anos de uma forma natural. “Minha mãe me levou pela primeira vez e eu comecei a fazer personagens pequenos em diversos filmes e desenhos da época”, comenta.
Imagem: arquivo pessoal/ Charles Emmanuel
Além do Rony Weasley, Charles ficou conhecido no imaginário das vozes através do personagem Ben 10, um dos principais desenhos dos anos 2000. Para ele, a dimensão que seu trabalho ficou mais evidente quando a internet se popularizou. O seu primeiro contato foi através de grupos que se formavam na antiga rede social Orkut, onde se discutiam sobre a dublagem e só a partir dali ele percebeu como a franquia era realmente importante.
“O pessoal criava fóruns para discutir sobre os filmes e eu ficava feliz por aquilo”, pontua.
Luisa e Charles participam de diversos eventos temáticos do universo geek que acontecem em todo Brasil. Nos eventos os profissionais são convidados para contar a rotina de dublagem e também curiosidades a respeito do trabalho e também imitam as vozes dos personagens.
Para os fãs que acompanham, é o momento de finalmente conhecer as pessoas que marcaram as vozes. Neste momento é possível registrar uma foto e fazer vídeos.
Através da voz, o legado...
Fora da dublagem, Caio Cesar, dublador do Harry, era um pouco do personagem na vida real. Caio se tornou eternizado para todos os fãs que acompanhou o desenvolvimento dos oito filmes da franquia. Além de perceber o amadurecimento, a mudança de voz e por fim a despedida do universo.
Caio não era além de um dublador, mas o responsável por representar através da voz a diversos jovens que se representavam através do personagem, seja pelas falas, as caracteristicas e também pelo próprio Harry. O dublador é eternizado e continuará vivo além do tempo e tendo seu legado representado durante as re-exibições da história produzida por J.K Rowling.
O profissional além da dublagem atuava como policial militar e acabou sendo assassinado, aos 27 anos, durante um patrulhamento de rotina na região do Complexo do Alemão, em 2015, no Rio de Janeiro. Caio Cesar que lutou contra a violência, tinha o mesmo objetivo que seu personagem Harry Potter. Na vida real, lutar e dar a vida em prol da segurança do seu espaço.
Imagens: reprodução/redes sociais
“O Caio era um grande amigo, nós tomamos um grande susto quando soubemos da notícia”, finaliza Charles Emmanuel.
A voz do Caio hoje faz parte do imaginário coletivo dos fãs que costumam reprisar o filme. “Foi um prazer ter Caio na família Warner em todos estes anos. Ele se tornou a voz de Harry Potter para uma geração de fãs e estará sempre em nossos corações", comentou a Warner Bros, durante nota após o falecimento do dublador. Além da empresa, o ator Daniel Radcliffe e a escritora J.K Rowling, utilizaram do Twitter para divulgar notas de lamento sobre o caso.
Além do som..
Outro dublador que também acompanhou o desenvolvimento dos personagens foi o ator João Capelli, que interpretou o personagem Draco Malfoy. João conta que se tornou mais fã da franquia após frequentar os eventos onde ele estava como convidado.
Confira mais da entrevista no podcast abaixo:
Além dos filmes, aconteceu no mesmo período a produção e a gravação das vozes para os jogos da franquia Harry Potter. Os jogos lançados para o computador tinham o objetivo de narrar de forma imersiva, fazendo que o jogador participasse da história de cada filme da franquia.
A franquia Harry Potter utiliza de diversos elementos transmidiáticos para poder expandir o universo narrativo em diversas plataformas, um dos teóricos da comunicação que analise este elemento é Herry Jenkins, que compreende o universo mágico como um fenômeno mundial.
No jogo era possível colecionar cards onde continham histórias de personagens que fazem parte de todo o universo bruxo e que não era contado nos filmes.
Quem participou deste processo de localização, termo técnico da dublagem quando se refere a jogos eletrônicos, foi o dublador Fábio Lucindo, que interpretou Harry Potter e o Draco Malfoy para a franquia.
Em tom curioso, Fábio contou que existia a possibilidade das vozes terem sido dubladas em São Paulo, que possivelmente poderia dar um outro tom ao trabalho cinematográfico.
Confira mais sobre esta conversa no podcast abaixo:
A chegada da dublagem no Brasil
No Brasil, onde os longas estrangeiros passavam com legendas, a novidade da dublagem chegou ao fim da década de 30, o grande marco foi a estreia do desenho animado Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt Disney, lançado em 1937 e dublado no ano seguinte. Naqueles primórdios, os atores tinham de gravar todos juntos no estúdio, olhando para a tela sem a ajuda do som.
Durante os anos de 1950-1970, foram criados no país vários estúdios de dublagens, como Herbert Richers, Álamo e a VTI Rio. Outros estúdios que investiram no cinema nacional foram a Delart (1933) e a Vox Mundi (2000). O estúdio Herbert Richers, localizado no Rio de Janeiro, chegava a fazer em média 150 horas de filmes por mês, ou seja, aproximadamente 70% dos filmes internacionais que passavam nos cinemas do Brasil naquela época.