A pequena Raiala em seu local favorito no terreiro (Foto: Rosana Andrade)

Crianças no Candomblé

por Juliana Tourinho, Paloma Silva, Rosana Andrade e Xande Fateicha

As crianças representam o futuro da nossa sociedade. Para a comunidade de Candomblé elas são ainda mais. São o renascimento. A certeza da continuidade dos saberes ancestrais. Da preservação do modo de vida africano. Do respeito às essências que vivem em cada pedaço da natureza. De que a energia vital do axé se manterá acesa. O olhar infantil, que recebe tudo como novidade e que se mantém aberto a novas possibilidades, guia a construção do futuro da religião.

Os pequenos propiciam a preservação de tradições antigas e também traduzem de um jeito próprio como é a vida dentro do Candomblé. Através das águas de Raiala, de oito anos, filha de Yemanjá, é possível perceber como é a vida de uma criança que pode aproveitar o espaço do terreiro para construir suas referências. É por meio da doçura de Maria Eduarda, de oito anos, filha de Oxum, que entendemos como o brincar no terreiro não somente é permitido, como é extremamente importante. Com a emoção de Flávio, de 12 anos, filho de Oxóssi, é possível entender como a proteção da comunidade é importante para reparar os danos do racismo religioso.

Estar dentro do espaço do terreiro é para elas, estar acolhida e vivenciar um modo de vida diferente, tanto em ensinamentos quando na velocidade do fluxo de informações. O que socialmente é imposto de maneira rápida, dinâmica e às vezes atropela etapas da vida, na comunidade do Candomblé tem um outro ritmo. Tudo é ensinado em seu tempo, de acordo com a capacidade dos pequenos.

As crianças podem circular e aprender na comunidade do terreiro mesmo antes de passar pelo processo iniciático. A iniciação é um tema delicado até mesmo para adultos, porque envolve algumas abdicações, mudanças de hábitos e entendimentos sobre processos da religião. Quando uma criança é iniciada, o processo é adaptado para o nível de entendimento infantil, dos limites do que ela pode vivenciar. No entanto, não só elas aprendem ao ser iniciadas, mas a energia da renovação que já é inerente aos pequenos também abrilhanta e enriquece a família do axé.

Veja no documentário relatos de como é a vivência das crianças dentro e fora da religião.

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Gabriel Brandao
    Gabriel Brandão na festa de saída de sua iniciação
(Foto: Rosana Andrade)

A iniciação

15 de outubro de 2018. Era uma noite clara, com poucas nuvens e uma lua cheia iluminava o caminho da BR 324 sentido São Caetano, na cidade de Salvador. Aquela era uma sexta- feira especial para Gabriel Brandão, na época com 4 anos. Criança doce, tímida e que apesar do semblante sereno, estava se preparando para um evento que mudaria a sua vida, a sua “saída”. A apresentação pública que culmina o período iniciático no Candomblé.

A decisão de tomar um passo tão importante foi tomada pelas pessoas que mais se importam com ele nesse mundo, sua mãe e avó. O pequeno Gabriel estava com uma doença que a medicina não explicava. Apesar de ter feito todos os exames possíveis, o diagnóstico era sempre o mesmo: “Está tudo bem!”. Mas a situação real estava longe disso. Depois de recorrer a todos os recursos da ciência humana, as responsáveis por Gabriel buscaram a fé para curá-lo. Como Candomblecistas, a família sempre acreditou na força do axé. Sua avó, a Iyalorixá Josy de Oyá, recorreu aos orixás para saber o que estava acontecendo.

Tudo foi revelado pelos deuses africanos através do jogo de búzios: Gabriel, filho de Ogum precisava fazer o santo. Ele foi escolhido pelo orixá guerreiro, pelo deus do ferro para seguir seus passos. Alguns meses depois desse aviso, ele se preparou para participar do processo que o fez mais um membro da religião. Na festa pública que apresenta o noviço à comunidade do Candomblé, muitos queriam participar e receber o garoto que representa também o futuro de um legado afro-brasileiro.

Na porta do terreiro, muita gente aguardava para entrar. Tinham moradores da rua e muitas pessoas do santo. As mulheres usavam saias e vestidos brancos, com turbantes e suas contas de proteção no pescoço e nas mãos. Os homens vestiam calças e camisas brancas. As jóias de orixás no pescoço davam um colorido ao traje. O lugar estava lotado. Dentro do barracão, as Ekedis, Ogans e todos os responsáveis preparavam o ambiente. Muitas palhas decoravam o local. Havia muitas folhas no chão, específicas para a celebração. O contraste do branco do piso e do verde das folhas, faziam com que o chão do local nos transportasse para a natureza.

O toque do atabaque ecoava para toda a rua. Mãos fortes tocavam o instrumento de forma sincronizada. E sob essa atmosfera sonora chegou no barracão o pequeno Gabriel. Vestido como um rei com suas contas de Ogum. Guiado por sua Iyalorixá, Josy de Oyá, foi apresentado a toda a comunidade do terreiro e a sua família de santo. Veja o minidocumentário da saída de santo de Gabriel Brandão (Barajenã).


  A Yalorixá Josy de Oyá guia os pequenos na relação com o sagrado (Foto: Paloma Silva)

O Axé pelo olhar das crianças

A pequena Raiala, de oito anos, Nana, como é carinhosamente chamada, chegou atrasada. Passou por nós e deu um sorriso rápido. Perguntamos a mãe Mary o que ela ia fazer hoje no terreiro. Nana ia ajudar nos preparativos da comida de Oxum. Era um sábado de sol lindo e a fonte da Deusa estava iluminada de doçura. A terra úmida e a imagem da sereia do rio me passearam a sensação de estar em casa.

Ficamos curiosos e fomos observar Nana. Ela vestiu uma saia branca e começou a rodar. O torso na cabeça foi colocado pela Dofonitinha de Xangô, uma de suas irmãs de santo, mas a pequena deu o “toque final ao visual”. O semblante leve e o sorriso largo revelam o amor e devoção dessa criança ao Candomblé. O sagrado africano enche seu coração de alegria e percebemos isso durante cada palavra dela na entrevista.

A pequena filha de Yemanjá ajudava a dofonitinha a enxugar a louça. Nos aproximamos dela e começamos a conversar. Ela então nos levou ao seu local favorito do terreiro, a nascente do rio. A câmera não estava ligada. Nana brincava com os peixinhos quando começou a cantar uma música em yorubá.

Nana rodava com a saia branca e os passos pareciam sincronizados. É como se ela estivesse dançando com a rainha das águas. O contraste do verde da natureza e da luz do sol batendo na saia azul e branca da pequena, fazia nossos olhos saltarem. Ao fim da canção, ela percebeu que estávamos olhando. O rostinho ficou corado. Nana começou a falar do amor à religião. Orgulho e emoção marcavam cada frase.

Nana conta que começou a fazer parte da família do Candomblé porque sua mãe é filha de santo. Desde pequenininha a acompanhava nas celebrações. Curiosa, gostava de ver e ajudar os adultos na preparação dos eventos. Sempre acompanhada dos mais velhos da casa, participava e aos poucos aprendia os segredos da religião. “Mãe Mary ensina muita coisa”, nos contou a pequena.

O significado de cada música, das comidas e os valores do Candomblé entram nos ouvidos de Nana e ficam registrados na memória. O Candomblé não tem livro didático. É uma religião que consegue vencer as barreiras do tempo e espaço através da oralidade. Dentro do terreiro, Nana aprende lições de amor e respeito às diferenças.

O amor que ensina aos pequenos

Saímos do Ilê Iji Omin LOba Axé T'Ogun, apelidado carinhosamente pelos filhos como "Quilombo de mãe Mary", na cidade de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador e fomos para o Terreiro Ilê Axé Iba Oya Omim Daráleje. Que tem a frente a Iyalorixá Josy de Oyá, no bairro de São Caetano, em Salvador. Lá fomos conhecer as histórias dos pequenos Arthur, Gabriel, Guilherme e Flávio. O menor deles, Gabriel, precisou ser iniciado às pressas na religião com quatro anos de idade por motivo de saúde.

Arthur, de oito anos e Guilherme, de sete anos, não são “feitos” no Candomblé, mas frequentam o terreiro de mãe Josy desde pequenos. Pra começar, eles encantaram toda equipe quando começaram a tocar o atabaque.

No início, um pouco de timidez porque a câmera estava ligada. Os olhares, que a princípio demonstraram insegurança, foram logo tomando força. Foi só o irmão mais velho ditar a música que as baquetas do trio acompanhavam de forma instrumentada. O som do atabaque ecoou por toda rua e trouxe curiosos: quem estava tocando aquele instrumento? O terreiro de mãe Josy fica de portas abertas para a comunidade. É uma casa onde todos podem entrar e receber o afago do Candomblé.

As crianças tocavam com paixão. A cada arranjo, as baquetas pareciam pular de suas mãos e o meninos ficavam cada vez mais empolgados. As mãos não cansavam e o ritmo ficava ainda mais bonito. Amigos, dentro e fora do templo. Cada um com sua vida. Sua história. Mas todos com muita coisa em comum: a devoção ao axé.

Amor que precisa de respeito

Um jovem de 12 anos assistia a tudo que acontecia dentro do terreiro. Flávio, filho de Oxóssi, estava quietinho ao lado da mãe. Ele sorria ao ver os mais novos tocando atabaque. A timidez dele era vista através do sorriso. Antes de gravar a entrevista, conversamos sobre o tema do trabalho e quando dissemos que a câmera estaria ligada, começou a gaguejar. Os olhos quase que saltaram da caixa, mas ele topou falar. Havia um grito abafado dentro dele.

A mãe biológica e mãe Josy, reforçaram sobre a importância de mostrar o lado belo da religião que as pessoas de fora não conhecem e o jovem foi se acalmando. No início, as palavras saiam baixinhas e a respiração forte mostrava nervosismo. Mas depois, o jovem soltou a voz. Flavio frequenta o terreiro de mãe Josy desde pequeno com a mãe biológica. Gosta de ajudar os adultos nas atividades da casa. Sabe muito bem a hora de brincar e a hora de trabalhar.

O jovem se sente acolhido por todos os filhos de santo e aprende muitos valores dos ancestrais que leva para fora do terreiro. O afago dos mais velhos passa segurança. O abraço de mãe Josy, a sensação de estar em casa. Seus olhos escuros, que mais pareciam duas jabuticabas brilham quando fala da religião. Um sentimento de pertencimento às raízes africanas.

 

Mas quando sai do terreiro, um espaço de amor e respeito ao próximo e a natureza, Flavio sofre muito com a intolerância religiosa na escola. Ele conta que já apanhou várias vezes dos colegas. A indignação por respeitar às diferenças e não ser respeitado, machuca o coração do jovem sensível. Ele não entende porque é tão incompreendido do lado de fora do templo e se emociona

Uma história de amor e resistência

Foto: Juliana Tourinho
Professor Marlon Marcos
Professor Marlon Marcos

Falta de respeito, intolerância e racismo religioso são situações vividas diariamente pelos praticantes das religiões afro- brasileiras. A criança é o alvo mais fácil e mais sensível.

Além de sentirem na pele a dor do preconceito, elas precisam ter força para passar os ensinamentos para as próximas gerações. É uma grande responsabilidade ser aquele que passa adiante as práticas dos ancestrais africanos.

Algumas pessoas se afastam do chamado ancestral por receio ou medo. É o caso do professor, doutor em Antropologia da UFBA, e egbomi de um terreiro de Candomblé, Marlon Marcos.

Sobre sua experiência no Candomblé na infância, o professor acabou resistindo um pouco, por ouvir as pessoas dizerem que era uma religião do diabo, mas na idade adulta “percebi que não conseguiria viver sem o Candomblé”.

Ouça Marlon falando sobre sua relação com o Axé.

De acordo com Marlon, a lei 10639/2003 vem para obrigar a recontar a história do Brasil mostrando a cultura indígena e negra . As crianças não negras aprendem também e respeitam as diferenças. O professor diz que as pessoas escutam Gil, Maria Bethânia e não sabem que muita coisa vem da cultura afro. “Acabamos sendo africanos também. Existe a lei, mas não foi efetivada. Grande parte das escolas de Salvador não cumpre a lei. A resistência é muito grande. Primeiro porque nem todos os professores são educados para esse debate.”

Na comunidade de terreiro da qual Marlon faz parte, as crianças são livres, puras e inteligentes. São formadoras de opinião e cultura. Nas festas, inicialmente, elas se assustam com o transe. Ficam perguntando o que significa aquilo tudo. Depois, aprendem a se relacionar com as entidades e com as pessoas que estão incorporadas. “Acho lindo quando a criança diz: aqui é minha mãe, mas daqui a pouco quem vai chegar é o orixá e depois o erê de minha mãe”.

Para ele, as crianças têm grande facilidade de aprender as cantigas e a tocar. Ela vai fazendo as coisas de acordo com seu gosto. “Tem umas que são mais inclinadas para a religião. Querem ir pro barracão, pra roda do santo, comer as comidas do santo. Já tem outras que não querem ir pro barracão, que não querem participar, que acham cansativo ficar no roncó. Algumas rejeitam”. Ele ressalta que nesses casos, cabe a comunidade do terreiro não obrigar a criança a pertencer a essa realidade, mas ensiná-la a respeitar a ancestralidade e a diversidade de religiões. Quem nasce em terreiro aprende a ter uma tolerância maior em relação a esse convívio.

Sobre a festa dos Ibejis, popularmente conhecida como São Cosme e Damião, o professor afirma que são santos adultos, que não necessariamente eram irmãos. Eles eram cultuados inicialmente no dia 26 de setembro e depois virou 27. A história de ter um gêmeo, um irmão, foi assimilação do Candomblé por conta da entidade de Douno. É a figura que aparece do axé. É a interferência do mundo africano sobre o mundo católico. Sempre como estratégia de sobrevivência das religiões de matriz africana.

Ouça a opinião de Marlon sobre os erês

Pirulitos
Doçuras para as crianças na festa de ibejis (Foto: Rosana Andrade)

A celebração dos Ibejis

Voltando ao quilombo de mãe Mary, a sacerdotisa permitiu que a gente filmasse parte da festa dos Ibejis que foi realizada dia 28 de setembro deste ano. Era também um sábado. Mamãe Oxum abençoou nossa tarde com um belo sol de quase 30 graus. A festa começou por volta das quatro horas da tarde, e no horizonte era possível ver o sol bem forte por trás da lagoa que fica em frente à roça.

Entramos no templo e logo tiramos os sapatos. Pisar na terra, significa sentir a energia da natureza. Mãe Mary nos recebeu com muito carinho e não mediu esforços para que ficássemos à vontade. Em pouco tempo de filmagem trouxe logo um belo prato de caruru” com tudo que tínhamos direito”. Estava maravilhoso! Comemos e depois, e não vamos negar que bateu aquele sono. As pestanas estavam pesadas, mas abriram rapidinho quando viram a pequena Raiala e os amiguinhos brincando.

A doçura de Nana,descalça e comendo com as mãos, só reforça os aprendizados africanos. Ela estava linda, com uma saia longa azul e verde, uma blusinha branca e um torço branco. Brincava na companhia de mais dois amiguinhos e ao mesmo tempo comiam.

Alguns adultos estavam incorporados de erê. Eles ficavam sentados na esteira, de roupas brancas e falando como criança. Sorriam o tempo todo. Cada filho de santo que pegava o prato de caruru, pedia autorização aos Ibejis para comer. E eles gargalhavam uma frase em yorubá autorizando. A mesa estava farta de comidas típicas: caruru, vatapá, frango de ensopado, feijão fradinho, côco e banana da terra. Após a comilança, mãe Mary nos deu um chá de gengibre. A festa estava muito graciosa, cheia de doces, bolos e enfeites.

Os erês gostam de brincar. Quando os filhos de santo da casa comeram, as divindades infantis tomaram a cena e começaram a diversão com os adultos. Era carrinho de um lado, fazer comidinha do outro e muitas risadas.
Essa parte não pôde ser filmada porque os adultos estavam incorporados. Ficamos só observando. Em pouco tempo a casa começou a encher. O quilombo de mãe Mary estava de portas abertas recebendo a comunidade. Muitos adultos e crianças chegavam para comer e apreciar a festa. O sorriso no rosto e a vontade de participar, mostrou o quanto o axé faz parte da rotina dos moradores.

O professor Marlon explica que existia um ritual chamado Barbúrdia, que era o caruru dos sete meninos. A comida era colocada no centro das casas e as crianças comiam com as mãos. Isso acontece nas casas de Candomblé. São Cosme está aí, mas não é só isso.São energias infantis: Os erês e os Ibejis também .

As filosofias africanas juntam as energias. O erê é um não orixá que é orixá ao mesmo tempo. O erê é a dimensão infantil do orixá. Por exemplo, o orixá não come a comida. Ele come simbolicamente , ma o erê pode meter a mão na massa e comer. O orixá não pode fazer as necessidades do corpo como xixi, por exemplo.

Tem que chamar o erê pra fazer. O erê aprende a cantar e dançar para que o ser humano suporte o processo de iniciação. “O Candomblé não existe sem o erê”.

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  A doçura de poder ser criança (Foto: Paloma Silva)

Brincar, o BÊ-A-BÁ da vida

“Brincar é viver a liberdade” afirma em alto e bom tom a professora Vanda Machado, mestre e doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), criadora do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó, implementado na Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos que fica dentro do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá. “As crianças são o futuro e vivem livres se divertindo nos terreiros de cima a baixo, sempre supervisionadas pelos adultos. O mais velho, pela hierarquia, sempre é responsável pela criança”. E essa responsabilidade pelas próximas gerações se estende para fora dos terreiros.

Quando entramos na casa da professora, a cabaninha de sua neta estava montada junto com alguns brinquedos espalhados, a pequena Sofia tem cinco anos. Dentro havia um livro sobre as histórias dos Orixás, escrito pela vovó. Tímida, a pequena Sofia estava voltando da aula de capoeira. Com carinho, a avó começou a perguntar como foi a aula. Foi difícil, mas conseguimos arrancar um sorriso desconfiado da pequena. A professora nos explica com os olhos marejados que a criança é um tesouro para o mundo.

Nossa conversa foi no escritório da casa de Vanda. Vaidosa, como uma típica filha de Oxum, colocou um torso estampado na cabeça e reforçou o batom. Os dedos estavam com anéis dourados. O casaquinho branco de renda por cima do vestido, deu um ar ainda mais elegante. A leveza nos gestos e a voz serena da professora, nos deixou muito à vontade para a entrevista.

Foi assertiva ao colocar dentro do currículo do Projeto Irê Ayó o brincar. Uma grande possibilidade e oportunidade de desenvolvimento para a criança é a brincadeira. Quando é feita em grupo, ela fortalece o pensamento coletivo, a liderança, colabora com a prática de amadurecimento da criança - como a limpeza, lealdade, atenção, respeito, cooperação.Vanda Machado finaliza a nossa entrevista com serenidade na fala e diz “lá na escola Eugênia Anna tem muitas árvores, se um adulto vê uma criança montada numa daquelas árvores, claro que vai mandar descer, é sobre aquele respeito que lhe falei”, encerra com risos.

Ouça áudio da Professora Vanda.

A legislação brasileira reconhece o direito de brincar, no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, é dever conjunto da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade dentre outros. Com quais condições, principalmente no formato político atual brasileiro, todas as crianças estão asseguradas de viver em plenitude esses direitos?

Num domingo a tarde, fomos ao terreiro Nzo Mungongo Lambeuaji Junsara no bairro de Ondina. O templo estava em reforma. Logo na entrada, a imagem de santa Bárbara nos recebe. Lá conhecemos Maria Eduarda, de oito anos. A pequena Duda, quando questionada sobre o brincar, animada afirma “eu gosto de brincar, adoro brincar aqui. Quando meu primo, que mora longe vem, nos divertimos muito e tem minha prima que mora aqui em cima. Corremos, brincamos de esconde-esconde, pega-pega. Aqui brincamos muito mesmo”.

Maria Eduarda
A espontaneidade de Maria Eduarda (Foto: Paloma Silva)

Fomos também ao Terreiro Ilê Axé Iba Oya Omim Daráleje, da Yalorixá Josy, no bairro de São Caetano, em Salvador. Mãe Jozy e os filhos da casa já nos aguardavam, a recepção foi algo à parte, a Yalorixá nos levou para conhecer as acomodações e nos deparamos com quatro crianças brincando pelo barracão, Gabriel (cinco anos), Guilherme (sete anos), Arthur (oito anos) e Flávio (12 anos), brincavam de cartas no chão.

Em um momento da entrevista quando a pergunta foi: ‘o que vocês fazem aqui?’, o pequeno Gabriel prontamente levantou a mão e gritou “eu brinco!”, todos riram. Ficou explícito para nós alí que o brincar no terreiro, tem a mesma leveza e alegria que o brincar no dia a dia, é o bê-a-bá da vida.

Não há diferença com o brincar dentro e fora dos terreiros. “As crianças são livres aqui, brincam, vivem a roça. Claro que tem lugares que não podem entrar, não podem ir e elas respeitam as ordens”, completa a Ialorixá Rosemary da Purificação que tem seu filho de sangue iniciado desde os cinco anos de idade, hoje com 25 anos, Victor Rafael passou pelo ritual iniciático por vontade própria.

Um ditado popular diz que a criança é uma folha de papel em branco. O antropólogo, historiador, jornalista, estudioso dos Orixás, religiões afro-brasileiras, doutor em Antropologia pela UFBA e professor adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Marlon Marcos, que viveu a infância no Candomblé, nos mostrou que é uma folha de papel em branco, mas riscada pelo próprio.

Ouça áudio do professor Marlon.

É um posicionamento de uma pessoa que vive o Candomblé e independente de qualquer interferência preconceituosa, ele leva a verdade da religião.

A família tem um papel fundamental na consciência do brincar para as crianças, mas, ao falar das crianças de Candomblé, a sociedade - a partir de conceitos prévios, sem fundamentação - deturpa a consciência dessa atividade, do brincar. É importante que estejamos atentos sempre, pois é o amor recebido na infância que traça o futuro de qualquer criança. O futuro do mundo. Como dizia a Yalorixá do professor e antropólogo Marlon Lucas “só levanta para ensinar quem se deitou para aprender”.

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  Professora Vanda Machado (Foto: Rosana Andrade)

Educação nos terreiros

Os braços da mãe nos colocam no mundo, nos recebem com amor e carinho e nos conduzem pelo caminho do bem. Ao ser colocada nos braços do axé a criança recebe a continuidade deste amor. E é esse sentimento, a base de tudo, o primeiro ensinamento. Dele vem o respeito e todas as outras formas de sermos seres humanos melhores.

Nesse percurso, conhecendo um pouco mais sobre a religião, o sentimento de amor nos envolveu a cada segundo. Traduzir em palavras a beleza, a sabedoria dos lugares que passamos e das pessoas que conhecemos não é uma tarefa fácil. Encontramos crianças sendo tratadas de forma condizente com o momento delas na jornada de vida e sendo conduzidas dentro dos rituais com cuidado e respeito. Leva-se em conta os limites da maturidade e entendimento. Os ensinamentos são leves, com ternura, alegria e naturalidade.

As crianças dentro do Candomblé aprendem o respeito pelos mais velhos, pelas tradições. A hierarquia de idade, de cargos. Aprendem a não ser racistas e a respeitarem as outras religiões. Aprendem também a se impor, a terem orgulho das origens e a defender suas crenças e escolhas.

Veja o vídeo em que a Pedagoga e Makota, Dai Costa, traz uma reflexão sobre os processos da construção de aprendizado das crianças dentro da religião e sobre a necessidade de uma educação ancestral para além dos terreiros.

 

A menina que sonhava com uma escola diferente

Desde o momento que sentiu que a escola que frequentava não era a dos sonhos, a menina começou a pensar: “Deve ter outra forma de ensinar, outro jeito de ter escola”.

Ela cresceu com o sonho no coração e resolveu junto com as quatro irmãs se tornar professora. Criaram uma escola, onde começou a exercitar o tipo de ensino que tinha em mente. Criou o próprio currículo, o próprio jeito de ensinar e trabalhar dentro e fora da sala de aula.

Esse era o início do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó, que hoje é ensinado na Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, no Ilê Axé Opô Afonjá, no bairro São Gonçalo do Retiro, na região do Cabula, em Salvador.

Foto: Rosana Andrade
Professora Vanda Machado
Professora Vanda Machado
A menina que sonhava, hoje é a Doutora em Educação, Vanda Machado, autora do projeto Irê Ayó. A escola é uma referência no ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena, muito antes da criação da Lei 11.645/08 que determina que todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, devem ensinar esse conteúdo.

Na prática, a lei ainda não é cumprida em sua totalidade. Ter 100% das escolas com o conteúdo na grade curricular seria o mundo perfeito para garantir crianças e jovens com acesso de forma correta ao assunto. Na escola Eugênia Anna dos Santos são ensinados os mitos afro-brasileiros. O respeito e a escuta fazem parte do trabalho dos educadores. Utilizam histórias e o aprendizado sempre parte de problemas cotidianos.

O currículo está atrelado a conteúdos legítimos, de acordo com a legislação brasileira. Apesar de estar dentro de um terreiro de Candomblé, a escola não impõe nenhuma crença, abraça crianças de diversas religiões, em sua maioria evangélicos. Isso demonstra o conforto que sentem dentro da escola, a qual ensina valores universais, que independem da crença de cada um. Amor, respeito e paz devem ser os pilares de qualquer religião.

Conhecendo a escola

Na chegada à escola, a imagem de Exú nos recepcionou. Essa entidade representa a comunicação e a abertura dos caminhos da vida. Caminhamos até a entrada principal do colégio e vimos as crianças enfileiradas indo para o intervalo. A alegria no olhar e a gargalhada da turminha, mostraram como são felizes naquele lugar. Os ensinamentos da cultura africana mostram aos meninos que é possível viver em harmonia e respeitar as diferenças.

A pequena Mariana ficou curiosa vendo pessoas diferentes dentro da escola. As amiguinhas foram brincar e ela continuava olhando pra gente. Nessa hora estávamos sendo recepcionadas pela Coordenadora da escola, Sandra Oliveira. Fomos até sua sala. Um espaço pequeno e acolhedor. Na mesa, fotos da família. O local era cheio de desenhos das crianças colados na parede e o colorido das cadeiras deu o tom para começarmos o bate papo. A conversa foi super enriquecedora. As educadoras falaram sobre as matrizes africanas e da importância da escola na propagação dos valores ancestrais.

E na hora da saída, quem apareceu pra nos dar tchau? A pequena Mariana! Pois é, ela estava voltando pra sala de aula com a auxiliar e nos deu um abraço gostoso. Parece até que ela sabia que viemos falar sobre a importância da sua geração para o futuro da religião afro-brasileira. Isso demonstra o conforto que sentem dentro da escola, a qual ensina valores universais, que independem da crença de cada um. Amor, respeito e paz devem ser os pilares de qualquer religião.

Professora Vanda conta a história da Yalodê. Veja no vídeo.

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  Cartazes da campanha do Ministério Público contra a intolerância religiosa (Foto: Paloma Silva)

Racismo e ódio religioso

A cor branca significa paz, pureza, limpeza. Para pessoas de Candomblé significa também respeito ao Pai de todos, Oxalá. Essa cor está também marcada nas vestes daqueles que foram escolhidos e renasceram para o Orixá. Motivo de orgulho estampado no modo de vestir. Auto afirmação. No entanto, mesmo com todo significado positivo, vestir a cor branco ou usar contas de proteção na rua podem ser um perigo. O motivo? O racismo e intolerância religiosa se materializam nas agressões de quem não tolera o modo de vida do Candomblé.

Foi esse ódio e não aceitação que mancharam de sangue as roupas da menina Kailane, de 11 anos, apedrejada no Rio de Janeiro em 2015. Que atravessaram o corpo da pequena Raiala, de oito anos, quando foi empurrada na escola e chamada de filha do demônio . Esses ataques materializados na violência física ocorrem não só pela rejeição a cor das roupas utilizadas pelas pequenas filhas de santo, mas por propositalmente atingirem o futuro da comunidade do Candomblé.

A pequena Raiala, com toda inocência de uma criança e doçura típica das filhas de Yemanjá, relata que, apesar da agressão física sofrida por ela por parte de colegas da escola, se mantém firme na defesa de sua religião. “Eles me empurraram, me bateram e me chamaram de demônio. A minha resposta foi de que se eu sou o demônio, isso não é da conta deles. Eu estou defendendo minha religião e meu Candomblé”.

Casos de racismo religioso na Bahia

Infelizmente a violência sofrida por Raiala não é algo incomum. De acordo com dados do Ministério Público da Bahia, até setembro de 2019 já foram registrados 100 casos de intolerância religiosa no estado. Os nove meses deste ano já superaram o número de 77 ocorrências em 2018. No entanto, só houve duas denúncias oficiais com relação a esses casos nos últimos dois anos.

Foto: Rosana Andrade
Desembargador do TJ/BA Ivanilton Silva
Desembargador do TJ/BA Ivanilton Silva
O crescimento de registros de violência direcionada a adeptos ou a templos de religiões de matriz africana pode parecer indicar um aumento do ódio religioso, mas, de acordo com o desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia, Ivanilton Santos da Silva, isso retrata mais como as pessoas estão reagindo às ofensivas. “Esses casos sempre existiram, o aumento nos registros é devido a uma maior divulgação da mídia. Um passo significativo a ser tomado nesses casos que são noticiados é a denúncia da vítima. Quando ela se rebela exigindo respeito a sua crença e a imprensa noticia o acontecido”, enfatiza.

Ainda de acordo com o desembargador, não existem processos oficiais na Bahia e em Salvador envolvendo crianças que foram vítimas de racismo religioso por serem de religiões de matriz africana.

O que diz a lei sobre crianças nas religiões

A participação das crianças no Candomblé é essencial para continuidade do legado religioso. Mas para a iniciação dos pequenos, algumas medidas legais devem ser tomadas pelos pais ou responsáveis. De acordo com o advogado das religiões afro-brasileiras, Dr. Hédio Silva Jr., os pais decidem a vida espiritual de crianças de até 12 anos, e em casos de rituais iniciáticos devem fazer declaração em cartório, assinada por ambos. Esse tipo de documento atesta o conhecimento sobre o tempo de recolhimento no terreiro, mudança de vestimentas e escarificação religiosa.

Foto: Arquivo pessoal
Advogado do STF Hedio Silva Jr
Advogado do STF Hedio Silva Jr
Dessa maneira a sacerdotisa ou sacerdote que iniciar a criança fica protegido de possíveis denúncias movidas pelo ódio religioso. Mesmo assim, é necessário que seja comunicado ao conselho tutelar da região que a iniciação foi autorizada mediante decisão dos pais, para que isso esteja registrado. De acordo com Dr. Hédio, é uma maneira de evitar problemas judiciais mas ainda assim podem existir conflitos com relação a família. “A declaração não impede que depois a família ou a própria criança, resolva reclamar da situação. Mas é importante que o terreiro e o sacerdote sejam legalizados. Isso fortalece a declaração”, pontuou.

Políticas públicas para mudança

O preconceito que atinge os adeptos do Candomblé desde cedo, como o caso da agressão física sofrida pela pequena Nana, deve ser combatido também através de campanhas e políticas públicas, que infelizmente ainda são escassas ao redor do Brasil. Nesse quesito, a Bahia dá um ótimo exemplo com o aplicativo do Ministério Público “Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa”. Lançado em novembro de 2018, ele surge como uma alternativa de desburocratização do acesso do cidadão à justiça, e auxilia principalmente outros locais do estado onde antes havia dificuldade de realizar denúncias dessa natureza.

Foto: Paloma Silva
Promotora do MP/BA Livia Vaz
Promotora do MP/BA Livia Vaz

Desde o lançamento do app foram feitas 117 denúncias, Salvador concentra a maioria delas. Os dados não demonstram nada em específico voltado contra crianças, mas traz à tona a conclusão de que as as religiões afro brasileiras sofrem mais com intolerância e ódio religioso. De acordo com a promotora de Justiça e Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhdis), dra. Lívia Vaz, as pessoas se valem de outros direitos para ser intolerantes: “Existem, por exemplo, alegações de que cultos de Candomblé causam poluição sonora, enquanto outros templos religiosos de outras doutrinas religiosas causam até mais poluição, com utilização de som mecânico”, relatou.

O MP-BA também busca combater o racismo religioso dentro do sistema jurídico, através da iniciativa “MP e Terreiros em diálogos construtivos”, que une representantes do poder público, órgãos públicos ligados à temática e lideranças religiosas. Ainda de acordo com a promotora, alguns sacerdotes ou adeptos do Candomblé não acessam o poder público por conta de barreiras, e este projeto serve principalmente para abrir o diálogo e ouvir as demandas do povo de santo.

Para Lívia Vaz, além das iniciativas do MP-BA citadas acima é necessário que todos busquem respeitar as diferentes crenças. “Intolerância é uma relação de poder onde aquela pessoa que é tolerada é objeto de tolerância e a que tolera tem poder de dizer se vai fazer isso ou não. Escolher quem e quando ela vai tolerar. Isso é um risco numa sociedade democrática. Devemos buscar principalmente o respeito inter religioso”, concluiu.

Um sentimento que pode ajudar a mudar esse quadro

Crianças e mães no terreiro de Mãe Josy
Crianças e mães no Terreiro de Mãe Josy (Foto: Paloma Silva)

As crianças representam o futuro da nossa sociedade. As sementes que plantamos para o amanhã. Próximos líderes, os quais acreditamos que, na vida adulta, terão a capacidade de tornar o mundo melhor e mais igualitário. Para a comunidade de Candomblé as crianças são ainda mais. São o renascimento. A certeza de que saberes ancestrais que vivem em cada pedaço da natureza serão continuados. De que os Orixás, Voduns e Nkissis serão cultuados em terra por muitos anos. De que a energia vital do axé se manterá acesa.

Apesar de toda a beleza da tradição afro-brasileira, dar continuidade a esta herança é uma batalha diária vivida por aqueles que têm fé nas entidades. Para preservar esse legado e combater o ódio religioso, além de políticas públicas, aplicativos, projetos… Existe um ingrediente fundamental: o amor!

Ele é capaz, por exemplo de alinhar discursos de uma criança de oito anos e um grande nome do judiciário como o desembargador Ivanilton Santos da Silva, que afirma: “Independente de religião, todos somos criaturas do divino. Só o amor para acabar com o preconceito e o racismo de pele e das religiões”.

 

Na luta contra o preconceito e racismo religioso que atinge religiões de matriz africana, algumas pessoas dão visibilidade ao axé de várias formas. Seja com registros fotográficos, produções audiovisuais, textos e livros sobre a temática.

Foto: Arquivo pessoal
Stela Guedes e Dindara
Stela Guedes e Dindara

Em 1992, a repórter do jornal carioca O Dia, Stela Guedes Caputo, tinha apenas uma pauta sobre o Candomblé na Baixada Fluminense. Ao entrar no terreiro a jornalista encontrou com o que seria mais tarde fonte de inspiração para uma pesquisa de mestrado que resultou no Livro Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé (RJ, Pallas, 2012).

Além de professora da UERJ, Stela é engajada no movimento de respeito às religiões de matriz africana. Leia abaixo o resultado da conversa com ela sobre esse mergulho no universo do axé e os desdobramentos no trabalho e visão de mundo.

Pergunta - De onde surgiu a motivação para começar a trabalhar com o tema da sua pesquisa? Foi natural esse processo de transformá-la em livro?

Stela Guedes - Eu era jornalista em 1992 e trabalhava no jornal O Dia. Meu editor me deu uma pauta que era ver se ainda existiam terreiros na Baixada Fluminense. Quando eu cheguei ao Ile Omo Iyá Legi, em Mesquita, a primeira cena que vi foi Ricardo Nery, de 4 anos, tocando atabaque. Fiz a matéria de página inteira que, obviamente não seria mais sobre se havia candomblé na Baixada, mas passou a abordar a participação das crianças nos terreiros.

Não conseguia esquecer as crianças, queria aprofundar mais a respeito de suas experiências nos terreiros, não queria mais a pressa do jornalismo. Voltei ao mesmo terreiro e permaneci lá por 20 anos, fiz mestrado, depois doutorado sobre o mesmo tema. Defendi a tese sobre crianças de candomblé em 2005, mas continuei trabalhando no livro que já queria publicar, mas achava que precisava aprofundar mais.

Em 2012, finalmente publiquei o livro. Não se pode ter pressa no candomblé, aprendi isso nos terreiros que me ensinaram um outro tempo e esse outro tempo também levo para as pesquisas. Eu demoro pesquisando, escrevo devagar, mesmo o mundo sendo tão acelerado e as publicações acadêmicas exigindo urgências, eu preciso demorar mais.

P - Na academia e nos movimentos de militância negros já se trabalha com a expressão “racismo religioso” diante da insuficiência da expressão “intolerância religiosa” para retratar a violência praticada contra religiões de matriz africana. Diante do seu trabalho, como você avalia que essa faceta do racismo atinge crianças de axé?

SG - O racismo é estrutural em nossa sociedade e isso precisa ser destacado em qualquer avaliação a respeito do tema. Nunca gostei do conceito tolerância e do seu par intolerância. Mesmo antes do conceito “racismo religioso” ganhar mais destaque, as crianças de terreiros, já na década de 90, me sinalizavam que o que elas viviam não era “só por causa da religião”, elas diziam: “é porque sou negra”, a Joyce me dizia isso aos 13 anos, a Tauana também me dizia.

Então, se as crianças localizavam a discriminação na sua cor da pele, como pensar que o sofrimento pelo qual passavam era apenas questão de tolerância ou intolerância? A filósofa Sueli Carneiro trabalha com o conceito de dispositivo de racialidade, o que eu acho bastante pertinente. O culto aos ancestrais chegou ao Brasil nos corpo de mulheres, crianças, negros e negras escravizados e escravizadas. Aqui ganhou ressignificação em distintas religiões chamadas afro-brasileiras, sendo uma delas, o candomblé.

Embora existam muitos brancos nos terreiros, os orixás são negros, negras. Missionários desde a colonização, nos países colonizados já associavam os orixás ao Diabo, em especial, Exu. Novos missionários como Crivella e Macedo continuam fazendo o mesmo seja em suas missões no Continente Africano, seja no terrorismo praticado pela Igreja Universal do Reino de Deus, uma empresa que comercializa fé e terror.

Não são intolerantes, são racistas e mais: são terroristas que estimulam o terror e a destruição de espaços religiosos. O racismo religioso é um dispositivo de racialidade, como outros dispositivos de racialidade acionados pelo racismo estrutural.

P - Durante a sua pesquisa foi possível observar a formação de crianças que cresceram vivenciando o modo de vida do candomblé. Qual a principal influência positiva na religião da vida dos pequenos que vivenciam essa experiência?

SG - Acredito que o desejo de comunidade, a vivência em comunidade, mas, sobretudo, um modo de vida não adultocentrado. No candomblé as crianças são muito respeitadas. Não são olhadas e nem sentidas como seres incompletos e, portanto, menos que os adultos. As crianças ganham cargos na hierarquia das casas, recebem orixás, tocam atabaques, realizam rituais. As crianças são sagradas no candomblé e essa é a principal lição.

P - O preconceito sofrido pelas religiões de matriz africana se perpetua na sociedade ao longo dos anos. Você avalia alguma mudança da forma de prática do racismo religioso de 25 anos atrás para o que acontece em 2019?

SG - Vamos aos números: de acordo com matéria publicada no jornal O Globo, em 19 de novembro de 2018, o número de denúncias de discriminação religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana no Brasil feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento 24 horas do Ministério de Direitos Humanos, aumentou 7,5% em 2018. Segundo a publicação, já as denúncias feitas por discriminação contra todas as religiões caíram de 255 para 210, ou seja, uma queda de 17%.

São violências de vários tipos: destruição de terreiros, proibições de funcionamentos das casas, agressões verbais e mesmo físicas contra praticantes. Vimos também que a nova onda de ataques terroristas contra os terreiros no Brasil chegou às redes sociais em vídeos compartilhados aos milhares. Uma das vítimas foi Mãe Carmem de Oxum que, em setembro de 2017, teve sua casa religiosa invadida e foi obrigada a destruir artefatos sagrados. A face dos agressores (embora escondida em suas próprias filmagens) também ficou mais evidente: “traficantes de Jesus” que, armados, ameaçam covardemente a vida de quem não obedecer.

Ao destruir o terreiro de Mãe Carmem, o “terrorista cristão a chama de “demônio chefe.” O racismo religioso aumenta e vivemos um momento político que, infelizmente, estimula essa onda de ódio. Por outro lado, as resistências também aumentam. Os povos de terreiros não chegaram aos dias de hoje sem luta, pelo contrário, eles deram a vida para trazer o candomblé até aqui e outras religiões de matrizes africanas até aqui.

A herança ancestral é uma herança de luta e é justamente essa ancestralidade que unirá cada vez mais toda gente de terreiro. Infelizmente muitos candomblecistas e muitos umbandistas ajudaram a eleger Bolsonaro. Eu espero sinceramente que com um ano de governo quem se iludiu seja lá porque motivo for, faça uma autocrítica política e honre a luta dos ancestrais revertendo sua posição política. Vamos virar esse jogo.

P - A seu ver, as crianças de candomblé tendem a ser mais abertas ao respeito à diversidade religiosa, econômica, social, racial e cultural?

SG - Sem dúvida. O candomblé não é uma religião proselitista, não converte ninguém. Ou seja, se você não quer converter ninguém significa que você não se acha melhor do que ninguém e nem a sua fé melhor do que outro modo de crer ou não crer. Não existe um ritual em qualquer terreiro em que o pai ou a mãe de santo vai mencionar outra religião e agredir outra religião.

O candomblé acolhe ricos e pobres, crianças, mulheres, homens de raças distintas (e estou usando raça não no sentido biológico, o que não existe, mas no sentido político do conceito). Acolhe diferentes orientações sexuais e as crianças, mas não só as crianças, os adultos também, aprendem e ensinam na experiência da diferença.

Atualmente o candomblé está sendo interpelado de maneira contundente a respeito da participação das pessoas trans no culto e eu tenho certeza que isso significará um avanço para o candomblé e todos nós praticantes veremos isso acontecer. A sociedade verá isso acontecer.

P - A partir dos personagens que você acompanhou na sua pesquisa, você chegou a registrar ou presenciar algum caso de violência contra crianças que foram iniciadas no candomblé?

SG - Prefiro dizer sujeitos de pesquisa. Sim muitos sofreram violência nas escolas porque o racismo é uma violência. As crianças de candomblé são chamadas de Diabo, de filhas e filhos do Diabo nas escolas e me diziam isso na pesquisa então sim, elas sofreram violência, em especial, nas escolas. E não podemos esquecer o caso de Kayllane Coelho que, em 2015, levou uma pedrada na cabeça porque estava com roupas de candomblé, voltando de uma festa em um terreiro.

P - No livro você questiona a real função do modelo de ensino religioso praticado nas escolas, e avalia como crianças do candomblé se sentem ao estarem inseridas nessa lógica educacional. Como você analisa a influência da escola na vida dessas crianças?

SG - Eu sou contra qualquer modelo de ensino religioso nas escolas. O Brasil é um país laico e a educação pública deve ser laica. O fato da Constituição Brasileira garantir a disciplina de ensino religioso nas escolas públicas é uma total esquizofrenia ao princípio da laicidade garantido pela própria Constituição. A escolarização pública foi marcada pela catequese desde seu início e continua sendo.

O ensino religioso existe para catequisar, para converter crianças e não adianta escreverem em qualquer lugar que a disciplina existe para “passar valores”, sim existe para isso, sendo que os “tais valores” são a demonização de religiões de matrizes africanas, mas não só isso. Os materiais didáticos distribuídos no Rio de Janeiro, por exemplo, condenam o aborto, a homossexualidade, a adoção de crianças por casais homossexuais.

Então sim, o ensino religioso “passa valores”, como seus responsáveis e defensores dizem, e são valores absolutamente conservadores, racistas, reacionários. Isso é ruim não só para crianças de terreiros, é ruim para todas as crianças, é ruim para a educação que deve ser espaço de inclusão. A educação só acontece na diferença.

P - Diante do momento sócio político atual do Brasil como você avalia a importância de uma educação religiosa mais inclusiva?

SG - Em qualquer momento político, a educação religiosa deve ser responsabilidade das famílias que levarão, se assim desejarem, seus filhos e filhas para o espaço religioso que desejarem. Escola é lugar de diferenças. Toda disciplina deve aprender com a diferença e ensinar o respeito pelas diferenças, inclusive as diferenças religiosas. O Rio de Janeiro gasta 16 milhões por ano com a disciplina de ensino religioso.

Quantos laboratórios poderiam ser construídos com esse dinheiro? Quantas quadras de esporte? Quantas creches públicas? No atual cenário trágico brasileiro de extremo conservadorismo, imbecilização e obscurantismo a disciplina de ensino religioso servirá ainda mais aos interesses econômicos-teocráticos dessa corja que está no poder.

Quando vencermos esse momento (porque venceremos esse momento) os setores populares com governos mais progressistas deverão fazer o que não fizeram: acabar com o ensino religioso. O PT no governo não fez isso. Pelo contrário, a Concordata Brasil-Vaticano foi assinada no governo Lula erro pelo qual pagamos até hoje. Espero que aprendam a lição, mas, sinceramente? Temo que não.

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Detalhe contas e pano da costa

Simbologia do Axé

Muitas pessoas olham para os praticantes do candomblé e não entendem o significado da indumentária ritualística, que segue uma tradição milenar. Uns acham bonito vê-los vestidos de branco, cheios de colares coloridos e turbantes amarrados na cabeça, outros podem não pensar assim. O fato é que eles acabam chamando a atenção pela vestimenta e adereços. Mas afinal, qual o significado de tudo isso?

O que são contas de proteção?

Os colares, são na verdade, fios de contas ou cordão do santo, que servem como proteção. Na linguagem em Yoruba é chamado de Àkufi isiro ou Ìlèkè.. Na época da colonização, os europeus trouxeram para o Brasil as contas artesanais e usavam para enfeitar suas vestimentas. Os candomblecistas começaram a usar essas miçangas e criaram os colares dos Orixás. Também conhecido como “guia”, representa a nação e cargos dentro da religião. Não é qualquer um que pode montar uma conta de orixá. Esse adereço de proteção é feito dentro do templo pela Yalorixá ou Babalorixá, com contas específicas e seguindo o ritual de cada nação do Candomblé. Esse símbolo religioso faz a ligação entre a matéria e o divino e permite uma comunicação espiritual com o Orixá e as energias da natureza.

Por que vestir branco?

Para a sociedade, a cor branca representa um pedido de paz e harmonia. Para os candomblecistas, o significado é muito maior: significa o renascimento para vida religiosa e a continuidade da ancestralidade. Quando vemos na rua uma pessoa toda vestida de branco, com colar e ojá na cabeça, provavelmente ela está em período de iniciação ou em alguma obrigação espiritual específica. O período de resguardo após a iniciação é conhecido como quelê, que pode durar de um a seis meses, o yawô (iniciado) veste branco e tem diversas restrições e recomendações a serem seguidas.

A proteção e beleza dos ojás

Quem já viu pessoas vestidas de branco, com turbante pode pensar que esse “adereço” é apenas um enfeite do traje feminino. Mas, o significado vai além disso. O ojá protege a parte mais importante do corpo humano: a cabeça. Espiritualmente, essa parte do corpo é o Orí, que também é uma divindade a ser protegida de energias negativas.
As abas (orelhas) do Pano de Cabeça estão relacionadas ao Orixá da filha de Santo e a sua idade de santo: se seu Orixá for feminino, você deverá usar duas abas (orelhas) saindo da amarração. Já se seu Orixá for masculino, deverá usar apenas uma aba (orelha) saindo da amarração. Esses adornos também são usados nas cerimônias religiosas como indumentária ritualística.

Simbolos


Reportagem de
Juliana TourinhoJuliana Tourinho
julianatourinho28@gmail.com
Paloma SilvaPaloma Silva
palomasdalmeida@gmail.com
Rosana AndradeRosana Andrade
rosana.digitalclip@gmail.com
Xande FateichaXande Fateicha
alexandrefateicha@gmail.com