Por Caroline Virgens, Dindara Ribeiro, Naiara Copque e Pryscila Brito
cajazeiras
Entre antes e depois
Estrada “esburacada”, morros altos e cheios de curvas, coração apertado dentro do ônibus que corre mais do que carro de Fórmula 1 ou aquela sensação de estar em uma aeronave turbulenta em dias de tempestade. Ir em Cajazeiras num transporte coletivo é para quem tem coragem: procure se sentar confortavelmente (se encontrar lugar vago), aperte os cintos para não correr risco de cair, e o mais importante: leve sempre um livro e avise à sua família (é possível que só volte para casa na outra encarnação). Brincadeiras à parte, o caminho é longo, mas durante esse percurso, também é possível observar o forte verde das árvores, muitas casas, prédios e, claro: gente!
Durante a ‘viagem’, o cheiro do mato toma conta, sensação que traz na memória as lembranças de uma infância vivida na roça, privilégio de poucos. Pela descrição, até parece uma cidade dentro ou próxima de Salvador, mas é apenas um dos percursos que muitos cajazeirenses fazem para chegar ao local, apelidado carinhosamente como “Cajacity”.
E é nesse longo percurso que, em 1993, a recém-moradora Marlene Bárbara chegou ao bairro. Com aspecto rural, na época, o verde tomava conta, o acesso era muito ruim devido à escassez de transportes e os moradores podiam dormir com as portas das suas casas destrancadas que nada acontecia.
E a estrada? Só se fosse de barro. Havia poucos prédios e uma quantidade menor de casas, afinal, “Cajacity” ainda não tinha caído na “boca do povo”. Transporte? Só se fosse por um milagre ou sorte, complementa Marlene: “quando cheguei em Cajazeiras, as opções de transportes eram, em sua maioria, kombis clandestinas. Os acessos para a vida da população estão bem melhores hoje”.
O novo conjunto habitacional, lançado em 1970, abriu espaço para diversas famílias viverem. Um pouco mais afastado de outros bairros da capital baiana, Cajazeiras apresentava dificuldades no que diz respeito a estrutura e mobilidade, mas sempre teve lá seu charme.
Há duas décadas, por exemplo, os moradores não tinham fácil acesso a mercados, escolas ou clínicas. O deslocamento do bairro para outros da cidade dependia de raros coletivos que transitavam entre as Cajazeiras e a antiga Estação EVA (Estrada Velha do Aeroporto), atual Estação Pirajá, mas o caminho e o percurso compensavam o esforço!
“Como moradora de mais de 20 anos, posso assegurar que isso aqui já foi um paraíso”.
Marlene Bárbara
Acontece que todas essas novas possibilidades atraíram muitos visitantes e novos moradores ao local. Com o progresso do bairro, houve uma proliferação muito forte de pessoas em pouco tempo. Terrenos foram comprados, casas e prédios construídos, comunidades foram crescendo e, consequentemente, houve um aumento na criminalidade.
De 20 anos para cá, Cajazeiras tomou forma de uma cidade quase que independente, por assim dizer, dentro de Salvador.
O bairro pode até ser comum a qualquer outra região de Salvador, mas são as características de independência que despertam a curiosidade dos soteropolitanos. Motivo de piadas, a distância de Cajazeiras do Centro ou de outros bairros de Salvador faz com que os baianos dêem o título de “outro país”, “outra cidade” ou simplesmente “Cajacity”.
A distância de Cajazeiras não parece intimidar tantas pessoas assim. Como é o caso da empresária Carla Souza, 29, moradora do Porto da Barra, que diz que apesar dos estereótipos sobre ‘Cajacity’, ela não considera o bairro como um local perigoso, e que era comum frequentá-lo para visitar uma amiga que morava por lá.
Barzinhos e pizzarias eram as programações preferidas das amigas, além disso, Carla confessa que devido à dimensão, considera o local como um município e sente saudades: “Foi um lugar onde vivi momentos bons”, completa.
Outro fator que torna o local diferenciado é a questão da quantidade de conjuntos que também ocupam a região como: Fazenda Grande I, II, III, IV, Boca da Mata, Águas Claras, e as Cajazeiras II, IV, V, VI, VII,VIII, X e XI. Bastante, não?!
Pois saiba que, da área total de Salvador (693,831 km²), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), todos os conjuntos que integram Cajazeiras ocupam uma área com cerca de 20,68 milhões de m², ou 0.02068000 km², o equivalente a mais de 520 mil campos de futebol.
A verdade é que o “país” Cajazeiras não sai da boca do povo. Mas para conhecer essa região e todo o seu potencial, é preciso superar preconceitos, por isso, convidamos você, leitor, a entrar nessa viagem para explorar os personagens e curiosidades dessa região rica em boas histórias e personalidades. Coloquem os seus trajes espaciais e embarquem na nossa nave em direção a “Cajazeiras, um “país” dentro de Salvador”.
Das fazendas à megalópole
Atualmente, Cajazeiras apresenta características de um bairro-cidade, mas nem sempre o local se organizou dessa forma. Antigamente, toda a região era composta por quatro fazendas: Fazenda Grande, Fazenda Cajazeiras, Fazenda Boa União e a Chácara Nogueira, que ocupavam uma área de 16 milhões de m². O local também era provido de muita área verde oriunda da Mata Atlântica.
Mas foi só na década de 1970 que o local foi apropriado pelo governo do Estado para se transformar no ‘Plano Urbanístico Integrado Cajazeira/Fazenda Grande’, construído como um grande último programa habitacional com cerca de 20 mil unidades para famílias de baixa renda da época.
O principal objetivo era proporcionar condições suficientes para abrigar uma população equivalente a de uma cidade de porte médio ou de interior. Apesar do benefício, a população local, junto ao bairro, teve um crescimento desproporcional com o aumento de invasões de terra, o que acarretou em uma série de problemas de mobilidade urbana e sanitária.
Embora seja veiculado que a população de Cajazeiras é de cerca de 600 a 800 mil e leve o título de “Maior bairro de Salvador e da América Latina”, não há dados oficiais que confirmem essa informação. Segundo o último censo do IBGE (2010), o número é de apenas 132.266 habitantes, o equivalente à população total do município baiano de Simões Filho (132.906), região Metropolitana de Salvador.
Cajazeiras é conhecida por ser autossuficiente. Quem mora em algum dos conjuntos, não vê necessidade de se deslocar para fora do bairro para quase nada, como é o caso de Wendylla Santos, 22, nascida e criada em Cajazeiras: “banco, comércio, médico, faculdade... Tudo tem aqui”.
São inúmeras as mudanças e transformações em toda a região de duas décadas atrás em relação a hoje. Questionada sobre o que mais mudou, Wendylla diz: “A gente saía aqui para cima e para baixo, brincava, sem medo de ser roubado, sem medo de nada. Chegava do carnaval às 4h da manhã, saltava lá na oito e vinha andando tranquilo, ninguém era assaltado”.
Em lembrança aos tempos de criança, ela recorda o sabor de um famoso sorvete que vendia na Rótula da Feirinha: “custava R$1, a bola era grande só que aguada. Fazia a alegria das crianças de Cajazeiras, tinha uma fila imensa”. Numa retrospectiva de antes e depois do bairro e suas melhorias, ela destaca a mobilidade urbana (transporte), o comércio, as novas vias de acesso como a 29 de março e o fim do engarrafamento na famosa ladeira da oito.
Toda a região apresenta livre comércio, shopping, hospitais, escolas, faculdade e veículos de comunicação próprios, como por exemplo: Rádio Comunitária, os portais ‘Cajazeiras na Web’, ‘Fala Cajazeiras’ e ‘Cajazeiras News’. Além disso, opções de lazer também fazem parte dos fins de semana dos moradores, como os famosos ‘Acarajé da Irá’, localizado na Rótula da Feirinha; ‘Bar do Garganta’, na Fazenda Grande II; O Campo da Pronaica, palco de eventos famosos (como carnaval de bairro, parques e festivais) em Cajazeiras X; e as típicas festas ‘Paredão’, onde jovens se reúnem para beber, dançar, encontrar os amigos e conhecer novas pessoas.
Rótula da Feirinha: o centro de uma relação de "amor e ódio"
Quem mora em Cajazeiras conhece bem o sentido da relação de “amor e ódio” com a Rótula da Feirinha durante o dia-a-dia, seja para fazer as compras para o almoço no domingão ou para causar estresse com os engarrafamentos nos horários de pico durante a semana. Dentro do ônibus ou até durante uma rápida caminhada pelo local, já dá pra perceber o porquê de a Rótula ser tão cobiçada.
Segundo um levantamento feito pela Associação de Micro e Pequenas Empresas de Cajazeiras (Amicro) em 2017, hoje o bairro é ocupado por cerca de 1.500 estabelecimentos de comércio formal, e já para a atividade informal, não há registros oficiais pela Associação.
Esse fator também explica o motivo de a Rótula da Feirinha ser o local certo para encontrar de tudo um pouco: jogo de panelas, as mais variadas frutas (de R$1 até R$5), temperos e condimentos, chips das mais diversas operadoras e até cópias dos (quase) extintos DVD’s. Ainda segundo a Amicro, em Cajazeiras há grandes empreendimentos, porém, não existem dados registrados sobre o rendimento anual do comércio no bairro
Foto: Dindara Ribeiro
O fato é que a Rótula da Feirinha de Cajazeiras é um verdadeiro “fuzuê”, onde as pessoas lotam as lojas, feirantes disputam entre si sobre quem lança a promoção mais atrativa, os carros de som anunciam os mais variados lançamentos e até peixes, caranguejos e frutos do mar frescos são encontrados à venda no meio da explosão de intensidade que é a Rótula.
Cajazeiras já teve até moeda própria
Para se ter uma noção do sucesso e da alta movimentação do comércio de ‘Cajacity’, na região já existiu um cartão de crédito local denominado “Cajazeiras Card”. Ele começou a funcionar no ano de 2012 e foi utilizado até 2016. Todas as pessoas físicas residentes no bairro podiam fazer o cartão.
Ele era destinado ao público de classe C e D e não pedia comprovação de renda. A média de crédito inicial do cartão era de R$150, podendo aumentar à medida que fosse utilizado.
A grande vantagem do “Cajazeiras Card” foi proporcionar empregos e renda, além de oferecer outras formas de pagamento aos consumidores de Cajazeiras e, consequentemente, alavancar o comércio local. No total, cerca de 48 empresas realizaram credenciamento para liberação do uso do cartão.
“Tem de tudo um pouco”
A concentração de tantos comércios encontrados na Rótula da Feirinha não são à toa. A alta no desemprego levou e leva ainda muitos baianos a montarem seu próprio negócio como fonte de renda principal ou até mesmo para garantir aquele extra no final do mês.
De acordo com Sérvio Túlio, o presidente da Associação de Microempresa e Empresa de Pequeno Porte (AMICRO), sem a necessidade de muitas burocracias, o comércio informal, sejam eles camelôs, pequenas vendas ou ambulantes, surge como um meio alternativo para conseguir dinheiro de forma prática em meio a crise que assola o país.
Produtos piratas (roupas, calçados, eletrônicos), apesar de apresentarem certos riscos para os consumidores por uma série de questões como ausência da garantia e de nota fiscal, qualidade inferior em relação aos produtos originais, possíveis danos à saúde, são facilmente encontrados nas feiras e são opções acessíveis para consumidores que possuem baixa renda.
É um pouco óbvio que um bairro com a dimensão de Cajazeiras seja bem abastecido no quesito comércio devido às inúmeras variedades de segmentos e setores. Afinal, não é difícil de entender: como um bairro autossuficiente, os moradores precisam encontrar de tudo (lojas de roupas populares, lojas de utensílios domésticos, restaurantes etc).
Em razão do crescimento habitacional do bairro, houve uma época em que se abriam muitas empresas voltadas para a venda de materiais de construção e hoje ainda é um destaque em toda a região, afinal, o crescimento populacional do bairro é ainda uma constante.
Ponto central do bairro, a Rótula da Feirinha também é utilizada como um local de referência para quem desconhece Cajazeiras. Para que fique um pouco mais claro, imagine a Rótula como um ponto: do lado direito ficam as Cajazeiras X e XI; do lado esquerdo da Rótula você se desloca para Cajazeiras VIII; e no ponto Sul, pode acessar as Fazenda Grande II e III.
Agora que apresentamos um pouco dessa agonia boa que a Rótula proporciona para quem mora no bairro de Cajazeiras e para você que está lendo essa reportagem, utilizaremos o local como um guia para lhe orientar a conhecer locais e histórias que só “Cajacity” tem.
Um espaço alternativo que leva a conscientização social através da arte
Arte: Ana Luísa Santiago
Um pouco distante de todo o corre-corre da megalópole Cajazeiras, das irresistíveis promoções dos feirantes à procura de clientes nos centros comerciais e do congestionamento de carros, ônibus e pessoas que transitam pela Rótula da Feirinha, está a Comunidade Rastafári, um local cercado por tanta área verde e cantos de passarinhos, que a imersão do contato direto com a natureza se torna real em meio ao caos que cerca a cidade grande. A leve brisa que toca o rosto, os pés sobre o chão de barro, as moradias simples e a música reggae são aspectos que ilustram o modo de vida Rastafári.
Surgida durante os anos 30, na Jamaica, a história da cultura Rastafári possui vertente na crença judaico-cristã, em que os adeptos da doutrina acreditam na existência e adoração de um Deus único. Desde a sua origem, o movimento "rasta" é envolvido por questões de preservação da natureza, cultivada como o templo divino de 'Jah Jah' (Deus); pela simplicidade e pelos discursos políticos e sociais que se tornaram uma marca registrada da população, em sua maioria africana, que reivindicavam o combate contra a discriminação de raças e classes.
Apesar de compartilhar uma mesma ideologia, o movimento rastafári possui três tipos de ramificações: Os "Boboshantis", as 12 Tribos de Israel e a Ordem de Nyahbinghi, que se distinguem uma das outras a partir da maneira como cultuam seus ritos, hierarquias e obrigações.
Foi a partir dessas questões que a Comunidade Rastafári da Cajazeiras X foi criada, em 2003, pelo músico e rapper Cézar Santos, que define a “família” como “um grupo de resistência e conscientização política e social” do bairro.
Ainda que se caracterize os “rastas” com os dreads e vestimentas próprias, a forma como vivem os cinco habitantes das simplórias casas - revestidas apenas com cimento e cores características da cultura jamaicana (vermelho, amarelo e verde) - em torno do terreno arbóreo, não se define através do estilo, mas sim, nas ideologias sobre compartilhamento e simplicidade que são características dos projetos culturais realizados pelos moradores e colaboradores dentro desse espaço.
Voltada para a criação de movimentos culturais, a área já abrigou diversos tipos de segmentos artísticos como: teatro, dança, música, saraus de poesias, grafites e até uma biblioteca comunitária já foi montada.
Apesar de não possuir um projeto específico, a Comunidade Rastafári é caracterizada como uma incubadora de atividades político-sociais, que utilizam a arte como um meio alternativo para abordar questões sobre conscientização para o público jovem do bairro. Assim como prega a ideologia rastafári, este espaço sagrado de ‘Jah Jah’ é aberto para toda e qualquer tipo de manifestação que respeite as diferenças. Para Cézar, o “microfone é arma de libertação" dos jovens das periferias.
Cézar Santos: Fundador da Comunidade Rastafári de Cajazeiras
Foto: Dindara Ribeiro
Ao perceber a carência de locais de lazer para os moradores de Cajazeiras durante os finais de semana, a Comunidade Rastafári busca meios alternativos para, além de levar opções culturais, abordar questões sobre a conscientização política e social para os jovens dentro das favelas, onde, na maioria das vezes, são vistos apenas como protagonistas no cenário das drogas, do tráfico ou da violência.
É por meio da arte e da educação que a comunidade trabalha para que esses meninos e meninas, rodeados de sonhos e esperança, descubram o seu potencial para ressignificar a imagem “marginalizada” das periferias.
"A nossa área de lazer dentro da periferia não existe. É precária. De domingo a domingo você só vê os bares abertos, os copos cheios e as mentes vazias".
César Santos- Fundador da Comunidade Rastafári de Cajazeiras
A maioria das atividades artísticas promovidas no espaço é realizada através de parcerias com grupos culturais do bairro e por iniciativa dos próprios integrantes da Comunidade Rastafári, majoritariamente composta por rappers, grafiteiros, pintores e músicos. Como é o caso de Erilson Assis, baterista e instrumentista que atua como agente e organizador dos eventos idealizados e cedidos pelos rastafáris com a proposta de integrar a comunidade ao universo da arte.
Conheça o CajaArte, o Concurso de Música, Dança e Arte de Cajazeiras
A Associação de Arte e Cultura Social, mais conhecida como CajaArte, é um projeto que fomenta a arte e cultura desde 2008 na região. Proporcionando um cenário de cultura e arte às crianças e jovens de escolas públicas do bairro, a principal luta do projeto é para conseguir um espaço cultural onde os jovens possam estudar, ensaiar, realizar eventos de cunho artístico, além de trocar experiências de uma maneira geral.
Equipes com excelentes dançarinos, cantores afinadíssimos (outros, nem tanto), apresentações quase que teatrais, muito ensaio, caracterização e brilho no olhar. Do pagode ao rap e do rock ao arrocha: foi essa multiplicidade de artistas, sons e estilos que deu vida à primeira edição do concurso de Música e Dança de Cajazeiras, o @CajaArte.
Pinturas faciais, figurinos caprichados nos últimos detalhes, um último ensaio dos passos de dança, aquecimento vocal e sorrisos ansiosos. Foi dessa forma que os participantes do CajaArte se apresentaram na praça de alimentação do Shopping Cajazeiras, localizado na Fazenda Grande II.
Idealizado pela Associação de Moradores de Cajazeiras e Adjacências, o concurso reuniu cerca de 21 participantes, nas duas modalidades (música e dança), durante as três etapas do evento, realizadas nos dias 11 e 18 de agosto (1ª e 2ª etapa) e 29 setembro (3ª etapa) de 2019.
A cada etapa acontecia um novo encontro de famílias, amigos e até fãs-clubes que pararam para assistir, torcer e aplaudir as performances dos candidatos. De olhos “vidrados” nas apresentações, os jurados, adultos e crianças vibravam a cada passo bem coreografado ou nota bem aguda.
A realização da 1ª edição do Concurso no bairro de Cajazeiras incentivou muitos jovens a trilhar um caminho alternativo por meio da cultura e da arte. Entre os prêmios, foram ofertados: cheques, medalhas, troféus, vaga de emprego e até uma bolsa de estudos 100% gratuita em uma universidade de Salvador.
Em êxtase, uma das participantes na modalidade de dança, Tailanne Dias, de 18 anos, foi a ganhadora do sorteio de uma bolsa 100% gratuita até o final do curso em uma universidade baiana: “Eu tô com uma sensação que nem eu sei explicar. Eu só escutei meu nome e saí correndo. Tô bastante realizada e com gratidão no coração” declarou.
A associação e a luta por um espaço cultural em Cajazeiras
Diga Não às Drogas e à Violência foi a campanha promovida pelo CajaArte antes, durante e depois da realização do concurso.
Sobre a primeira realização desse projeto que já dura 11 anos, seu Evanir Borges, Presidente da Associação de Moradores de Cajazeiras e Adjacências e líder comunitário da região há 35 anos, diz: “A gente faz um projeto desse com muita garra, tirando do nosso próprio bolso para fazer. [...] A grande dificuldade que temos é a financeira, pois o jovem artista precisa de espaço e equipamentos para gravar sua música. Essa é a maior carência de Cajazeiras: falta de estrutura", completa.
Cajazeiras pode ser uma fábrica de talentos, mas a ausência de um centro cultural, que é um espaço onde os jovens podem ter acesso a equipamentos e espaços de ensaio, além de poderem realizar gravações, pode ser desmotivadora. É para conseguir um centro cultural com direito a biblioteca e estúdio que o líder comunitário Evanir Borges e seus parceiros lutam tanto.
Com certificados de honra ao mérito, uma parede coberta por jornais que falam de Cajazeiras, títulos de reconhecimentos por sua sala e seu velho boné na cabeça, o líder não esconde o amor por Cajazeiras e nem seu principal objetivo: garantir qualidade de vida à juventude da região através da cultura, da música e da arte.
Seu Evanir, presidente da Associação de Moradores de Cajazeiras X, critica a falta de espaço de lazer na comunidade
Foto: Dindara Ribeiro
“O poder público tem que olhar mais para a nossa juventude. Para se combater a violência, tem que melhorar a educação, a cultura, a arte. É para isso que estamos lutando!”.
Evanir Borges - Presidente da Associação de Moradores de Cajazeiras e Adjacências e Organizador do CajaArte
A arte como poder transformador na periferia
A mistura do bom humor e a criatividade de um sagitariano com a técnica e o equilíbrio de uma virginiana foi a fórmula perfeita para que a dupla de dança ‘Ritmo Quente’ desse certo.
Embalados pelos ritmos paraenses da banda Calypso e pelo ritmo da Lambada, Rafael Oliveira, 27, e Elaine Pereira, 25, nem eram nascidos quando o gênero musical estourou pelo Brasil e outros países internacionais nos anos 1980.
Quem vê os jovens sorridentes andando pelas ruas de Cajazeiras, nem imagina que quando eles colocam os figurinos e sapatilhas de apresentação, a química e conexão com a dança fazem com que Rafael se transforme em Raulf Olyver e Elaine adote o sobrenome Fortynelle
A relação começou na infância com o estranhamento da garota tímida, ao olhar o menino levado e cheio de criatividade inventando coreografias e figurinos pelas periferias de Jaguaripe I, e hoje perdura como uma parceria que já dura 12 anos.
Sempre a procura de oportunidades para participar de concursos, foi dessa forma que a dupla mais quente de Cajazeiras concorreu e levou o 1º lugar na categoria de Dança do CajaArte.
Em cima de uma estante de vidro improvisada dentro da simples e confortável casa de Raulf Oliver, os troféus, honrarias de mérito, medalhas, dois DVDs e três grandes cheques, além da enorme quantidade de figurinos misturados entre os mais refinados e os “emendados”, resumem em material todo o esforço da longa trajetória da dupla, apesar da pouca idade.
Dizem que quando a gente faz algo que ama, os nossos olhos brilham, a alma fica mais leve e todas as dificuldades -ou parte delas- desaparecem. E é dessa maneira que a dupla demonstra a paixão pelo que faz quando escuta a poderosa palavra "arte".
Para além de se apresentar, Rafael Oliveira e Elayne Pereira acreditam que o poder da arte é capaz de desviar os jovens da comunidade do "caminho errado" como: a bebida, as drogas e a violência, e que a implementação de eventos culturais também contribuem para fomentar a carência dessas oportunidades que são pouco ofertadas dentro de um bairro tão extenso como Cajazeiras.
"A arte vai muito além de brilhar, é um protesto, é uma política, é a maneira mais perfeita de você protestar com beleza".
Raulf Oliver - Vencedor na categoria Dança, no concurso do CajaArte
"Eu acho que os jovens dos bairros periféricos tem a arte mais como uma válvula de escape".
Elayne Fortynelli - Vencedora na categoria Dança, no concurso do CajaArte
Do JACA ao CajaArte: projetos resgatam jovens da marginalidade em Cajazeiras
Um boneco representando um jovem negro para incrementar a performance, letra e melodia muito bem estruturadas, um grito sutil de dor na voz. A canção “Manchete de Jornal” é daquelas que têm o poder de machucar os sentidos com a verdade contida nos versos e, ao mesmo tempo, acariciar o coração com sua poesia.
Nem toda manifestação artística tem um apelo por trás, mas no caso da música “Manchete de Jornal”, composta e interpretada por Lilian Ropis e seu colega Fernando Teixeira, vencedores do 1º lugar na categoria musical do concurso CajaArte, a canção se trata de uma denúncia. A letra, que nasce a partir de uma triste história, é um pedido de socorro a todos os jovens que morrem diariamente em periferias, favelas e comunidades.
Projetos como o Juventude Ativista de Cajazeiras (JACA), que fica localizado em Cajazeiras 5 e o CajaArte, na 10, são alguns dos muitos que existem na região. Esses projetos, além de fomentar a cultura e a arte, resgatam a juventude de caminhos como o de vício em drogas, violências etc. A arte transforma, a música denúncia e a poesia liberta. Alguém tem dúvidas disso?
Fernando Teixeira e Lilian Ropis, nome artístico de Lilian Jurema dos Santos, se conheceram numa oficina de técnica vocal ministrada por Fernando, no JACA. Fernando, que também é professor e produtor musical, percebeu na amiga um elevado potencial para trilhar o caminho na música: “Ela tem uma força muito grande pelo que faz, e também pela sua competência e pelo seu talento”, disse.
E foi com esse grito de socorro implícito na canção que a cantora de 32 anos se dedica ao máximo nos ensaios, e utiliza a música como forma de denúncia para compartilhar suas vivências com o público: “Cada vez que nós ensaiávamos, nós procurávamos pensar em passar fielmente o que a letra da música estava querendo dizer”, conta.
Com um sorriso tímido no rosto e a força de vontade que ferve no olhar, a dupla, muito contente com a repercussão da música e do resultado obtido no concurso, diz que já esperava receber o prêmio. Segurança? Talvez. Preparação e força de vontade? Com toda a certeza! “Eu entrei nesse concurso dizendo: eu vou ganhar! Aonde eu chegar eu tenho que fazer a diferença, esse é o meu discurso e eu sabia o lugar da premiação que eu queria conquistar”, declara Lilian.
“Eu não posso ser mais uma no meio da multidão. Aonde eu chegar, tenho que fazer a diferença, esse é o meu discurso.”
Lilian Ropis, vencedora na categoria Música do CajaArte
O monumento cultural e sagrado para o povo de axé
Arte: Ana Luísa Santiago
Era o ano de 1990 quando Iaraci Santos Brito colocou os pés pela primeira vez em Cajazeiras. Aos 24 anos, a garota de sorriso largo, um coração cheio de fé e natural de Salinas das Margaridas, ainda não imaginava que aquele bairro, rodeado de árvores e mata fechada, mudaria a sua vida para sempre.
A ligação de ‘Mãe Iara de Oxum’ com o candomblé começa desde a infância, no qual a sua avó materna ocupava o cargo de ialorixá, em um terreiro em Salinas das Margaridas. Apesar da proximidade com a religião de matriz africana, Iaraci ainda não entendia o propósito da manifestação dos orixás na sua vida. Foi só através de um derrame facial e uma deficiência no corpo do seu segundo filho, que Mãe Iara conheceu o poder de Xangô, o Deus da Justiça. Orientada pelo Penacho de Ouro, um orixá caboclo com espírito de índio, Iaraci entrou em uma mata fechada, onde avistou um lago e ficou encantada com uma enorme pedra que ocupava o centro do local. E foi nesse lago que Mãe Iara banhou e curou o corpo do seu filho, na atual Pedra de Xangô, localizada no bairro de Cajazeiras X.
Cultuado como um monumento cultural e sagrado para o povo de axé e tombado como Patrimônio Municipal de Salvador em 2017, pela Fundação Gregório de Matos, o movimento para a realização da ‘Caminhada da Pedra de Xangô’ se deu a partir do aterramento do rio pelo governo baiano em 2005.
Através do Programa Sanear, para a resolução de um problema de esgotamento sanitário da região e construção de uma via, que hoje é conhecida como Avenida Assis Valente, ou “pistão”, como os moradores costumam chamar. Ver o rio que banhava a pedra e que também serviu como um local de fuga para diversos negros escravizados à procura de uma vida livre, foi uma das grandes motivações que fizeram Mãe Iara de Oxum organizar um movimento, junto com outros terreiros de Cajazeiras e adjacências, para criar a caminhada com o objetivo de manter a preservação da Pedra de Xangô, que, neste ano, completou a marca de 10 edições.
Como forma de agradecimento ao Deus da Justiça, dos raios, trovões e do fogo, durante a caminhada da Pedra de Xangô, o povo de santo prepara uma oferenda conhecida como 'Amalá', alimento constituído por quiabo, azeite de dendê, cebola, camarão e mel, elementos típicos encontrados na maioria das comidas baianas. O prato, conhecido como ‘ebó’, ou sacrifício apresentado, é oferecido nas religiões de matriz africana por um babalorixá ou uma ialorixá, respectivamente pai ou mãe de santo, figuras responsáveis pelo zelo e cuidado com as mais diversas atividades dos terreiros. O Amalá, além de alimentar o orixá, também é crucial para o alimento da fé, do significado de ancestralidade e respeito do povo de santo com o sagrado.
“Sem preservação não existe axé!”
“Nós, povo de candomblé afro-brasileiro, precisamos da natureza. A nossa religião sem folha não existe, sem água ela não existe, sem pedra ela não existe”.
Mãe Iara - Organizadora da Caminhada da Pedra de Xangô
Para preservação de toda a área verde onde está situada a Pedra de Xangô, há um projeto denominado Parque em Rede da Pedra de Xangô, espaço que abriga 12 pontos sagrados da religião de matriz africana. O objetivo da obra será a construção de um local de convivência para a comunidade do entorno, para práticas religiosas e para os visitantes terem um contato e experiência com a cultura afro.
Para o andamento do projeto, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) composto pela Secretaria Municipal de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência (SECIS) e a Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF) e por pessoas da sociedade civil que são: um pastor, uma representante do povo de santo e uma pesquisadora e autora do livro sobre a Pedra de Xangô.
Segundo a arquiteta da FMLF, Ludmila Gavazza, para fazer o levantamento do projeto para o Parque da Pedra de Xangô, foram realizadas visitas técnicas, estudo da área para preservação do local e diagnóstico para compreender quais são as demandas do lugar e posterior diálogo com o GT e apresentação do projeto para toda a comunidade. “Foi interessante trabalhar com esse grupo que representa bem as necessidades relacionadas ao Parque e foi onde pudemos fazer as nossas premissas do projeto”, disse Ludmila. A arquiteta, ressalta que o equipamento será um local para a sociedade utilizar como um lugar de convivência.
Após as obras, o Parque terá uma ambientação um pouco mais rústica que remete proximidade com a natureza, auditório, memorial, pergolado, espaço para comércio, implantação de praças para passeio, lazer e atividades como capoeira. Nos estudos preliminares do projeto, está previsto o desvio da Avenida Assis Valente e da Rua Santa Engrácia, que passam próximo à Pedra de Xangô. A realização desta intervenção possibilitará privacidade para as práticas religiosas, além de aumentar a área do Parque que passará de 31.000 m² para 67.000 m².
A temível ladeira que prova a resistência e paciência de motoristas e pedestres
Responsável por “despelar” pneus, fazer o carro “morrer” e até protagonizar a queda de um caixão que estava dentro de um carro de funerária, o famoso “Ladeirão da Oito” desafia até o motorista mais experiente. Apesar do nome oficial ‘Estrada da Paciência’, o adjetivo sequer faz jus para quem precisa enfrentar a ladeira todos os dias.
Utilizada muitas vezes como atalho para evitar congestionamentos das Cajazeiras vizinhas, tanto os carros de pequeno porte quanto os mais pesados precisam lidar com a ingremidade da ladeira que assusta tantos motoristas.
Apesar do nome oficial ‘Estrada da Paciência’, o adjetivo sequer faz jus para quem precisa enfrentar a ladeira todos os dias
Foto: André Vinagre
Entretanto, para quem vive no bairro, enfrentar os 220 metros da pista não parece ser tão temível assim. “Cria” de Cajazeiras há anos, o estudante de Administração Ailton Júnior, 25 anos, se diz experiente em lidar com a ladeira e ainda dá dicas para aliviar a tensão de muitos condutores: “O segredinho é puramente colocar na primeira, entrar um pouquinho mais aberto na ladeira, evitar a parte mais íngreme e paciência! Sem correr muito, sem enfiar o pé você chega lá”, conclui.
“É um grande desafio para pessoas que não moram aqui ou para motoristas iniciantes.”
Ailton Júnior, morador de Cajazeiras
A ladeira que testa a fé de muito motorista e faz pedestre implorar por misericórdia já foi também uma ribanceira, mas hoje ela conecta a via regional ao bairro Cajazeiras VIII.
Morador de Cajazeiras há mais de três décadas, Jacques Santana, 60, também mora defronte ao ladeirão. Durante esse tempo de moradia, pôde ver muitos carros e carretas derraparem de forma desgovernada, além de graves acidentes. Quase um íntimo da ladeira da 8, Jacques também acompanha o teste de fé que é enfrentar o desafio de subida e descida: “Eu acesso a ladeira todos os dias, pois é por onde eu passo diariamente para ir trabalhar”.
O ladeirão é tão famoso que já foi tema de trágicas e cômicas reportagens de alguns veículos de notícias da capital baiana. Em maio deste ano, um vídeo que mostra o momento em que um caixão cai de um carro ao subir a ladeira viralizou nas redes sociais “O caixão caiu, véi! Subindo a ladeira da 8. O morto não pode nem ter mais paz”, diz o autor do vídeo.
De acordo com a Superintendência de Trânsito de Salvador - TRANSALVADOR, o número de ocorrências (acidentes, denúncias de estacionamento irregular e manifestações) que já aconteceram com veículos na ladeira entre os anos de 2018 e 2019 chega a 39. Não foram encontrados registros oficiais da altura ou inclinação da ladeira. Apesar das críticas e da fama negativa, ressaltamos para os motoristas de plantão que a passagem por lá não é obrigatória, é uma opção de rota, que muitas vezes deixa o caminho mais curto.
Desvendando “memes”: o que falam sobre Cajazeiras na internet?
Quem nunca fez ou ouviu uma piada sobre a distância de Cajazeiras que atire a primeira pedra. São muitos os memes, paródias e piadas encontradas nas redes sociais. A maioria brinca com a questão da distância e da demora dos ônibus, tanto com destino a Cajazeiras quanto de Cajazeiras para outras localidades. Apesar dos muitos comentários que envolvem essa região de Salvador, o “país” Cajazeiras é um local no qual muitos moradores se orgulham.
Mesmo com os vários dissabores que já passou por morar em Cajazeiras, como Uber cancelar, perder ônibus para trabalho e entrevista de emprego, deixar de conhecer algumas pessoas, a moradora de Cajazeiras X, Ingrid Carolaine, 20, diz não sentir vontade de morar em outro bairro “Cajazeiras, hoje em dia, é uma cidade praticamente. Você encontra tudo aqui: Shopping, roupas, hospital”, afirma.
Quando criança, tomar banho no pinicão era o sonho da estudante de psicologia Karol Anne de Jesus, 29, até descobrir que o rio, com um apelido para lá de excêntrico, é inapropriado para banho. A jovem afirma gostar muito do bairro onde vive, compreende a fortaleza do comércio, mas reconhece que o local ainda precisa de melhorias.
É onde muitas famílias, jovens e artistas moram, alguns desde sempre, outros recém-chegados. É onde muita gente, além de morar, estuda, trabalha e vive suas vidas. Em Cajazeiras existem conjuntos, associação, projetos sociais, representantes, facilitadores e agentes culturais que buscam melhorias para o povo e não medem esforços para fazer deste bairro, um grande lar.
Foi durante essa jornada literária sobre ‘Cajacity’ que encontramos muitos personagens com histórias das mais diversas. São essas singularidades que fazem de lá um bairro único, incomum e de destaque, sempre na ponta da língua dos soteropolitanos. Quem está lá não quer sair e quem está de fora, precisa conhecer e se livrar dos preconceitos.