Nordeste

Um Nordeste à espera da água que escorre do Rio São Francisco

Uma reportagem fruto de um percurso de oito dias, por mais de 2.300 Km

Foto: Inês Campelo/Marco Zero Conteúdo
Foram visitadas 18 Vilas Produtivas Rurais do Projeto de Transposição do Rio São Francisco

Quando a transposição do Rio São Francisco começou, em 4 de junho 2007, a promessa era de que a água levada pelos 477 quilômetros de canais iria mudar a realidade de cerca de 12 milhões de pessoas no Semiárido Nordestino, região com os piores indicadores sociais do Brasil, castigada por constantes períodos de estiagem e a ausência histórica de políticas públicas.

À medida que as máquinas avançavam, 848 famílias que moravam ou trabalhavam no caminho da obra tiveram suas vidas completamente modificadas. Em 2010, após muita negociação, os primeiros moradores começaram a ser transferidos para dezoito Vilas Produtivas Rurais (VPR).

Dez anos depois, pouco antes do início da pandemia da Covid-19, uma equipe de reportagem da Marco Zero Conteúdo visitou as dezoito VPRs. Foram 2.300 quilômetros percorridos para mostrar como as pessoas mais afetadas pela transposição estão vivendo. À espera da água, elas enfrentam dificuldades para plantar e, em muitos casos, para abastecer as próprias casas. Enquanto a obra não fica pronta, os mais velhos não conseguem se adaptar ao novo estilo de vida e os mais jovens perdem o vínculo com suas raízes.

O termômetro do carro marcava 44 graus. O alaranjado do chão pedregoso, a poeira e o azul do céu sem nuvens pareciam intensificar o calor. Logo no início da conversa com José Antônio Ribeiro, o convite para entrar em sua casa veio acompanhado da frase que resume a insatisfação dele com o lugar onde vive: “Aqui não tem um pé de sombra”.

Dez anos se passaram e Zé Ribeiro, como gosta de ser chamado, não se acostumou com o que ele ainda chama de “casa nova”. Com 84 anos, ele é o morador mais velho da Vila Produtiva Rural Junco, a mais antiga do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional.

Antes de se mudar para a VPR, em maio de 2010, morava em um sítio no Baixio dos Grandes, no município de Cabrobó, no Sertão pernambucano. O sítio, onde passou cerca de sessenta anos da sua vida, era uma das 1.889 propriedades rurais afetadas pela obra. No lugar da antiga casa agora existe um reservatório que abastece parte do município de Terra Nova (PE).

Zé Ribeiro sente falta da vida antiga. Da roça, das frutas e de tomar banho de rio. “Isso aqui é uma ilusão. Foi uma ruindade que fizeram comigo. Mudou muito a minha vida”. Esse sentimento de não pertencer ao novo lugar, em maior ou menor grau, está presente na maioria dos moradores das dezoito VPRs espalhadas pelo Sertão de Pernambuco, Ceará e Paraíba. É como se a vida das 848 famílias que trocaram suas terras pela promessa de um futuro melhor em uma vila estivesse pausada.

Muito do sentimento de “não pertencimento” vem da lógica das VPRs. As vilas são uma espécie de condomínio fechado e, quase sempre, isolado. Cada família realocada recebeu uma casa de alvenaria com 99 m² de área construída em um lote de meio hectare (5000 m²), além de rede de água, sistema sanitário, energia elétrica, posto de saúde, escola, espaço de lazer e áreas destinadas ao comércio e à construção de templos religiosos, tudo previsto no Programa de Reassentamento das Populações (PBA08), documento do Governo Federal. Para ter uma ideia do tamanho das vilas, a maior delas, Vassouras (Brejo Santo/CE), tem 145 casas. A menor, Ipê ( Jati/CE), tem 10.

As famílias também receberam cinco hectares de terra para a agricultura, sendo dois e meio irrigado e dois e meio sequeiro (terreno não regado utilizado para plantar nos períodos de chuva ou para criação de animais), com pequenas variações em alguns casos específicos e acordados. Da parte irrigada, porém, apenas um hectare seria entregue pronto para o plantio, com toda estrutura montada, o que ainda não aconteceu. Os lotes produtivos, sorteados entre os novos proprietários, ficam em uma área afastada das casas e não contínua. Ou seja, os lotes irrigados estão separados dos sequeiros, o que dificulta uma expansão do sistema.

Muito vizinho…

O problema é que as VPRs, muitas vezes com estrutura material melhor que as das moradias antigas, possuem aspectos de um espaço urbano que se distingue totalmente do espaço rural que as famílias remanejadas estavam habituadas. Nos sítios, quase sempre as casas ficavam distantes centenas de metros umas das outras e era comum que os vizinhos mais próximos fossem parentes. A mudança compulsória transformou radicalmente a vida dos moradores e suas relações sociais.

Mudanças que afetam os mais velhos e os mais novos. José Gomes da Silva tem 23 anos e chegou na VPR Junco com 13. Ele é um dos netos de Zé Ribeiro e mora com os avós desde os três anos. Como o avô, prefere a antiga casa no Baixio dos Grandes e a vida que levou na infância com banhos de riacho e pescarias. “Aqui não tem lazer”. Mas reclama mesmo é dos vizinhos, e dos pequenos conflitos, como som alto ou roubos de galinha.

Além das galinhas, cria no quintal de casa “umas cabras” para reforçar a renda familiar. As cabras por sinal, são outro motivo de queixa da família. “Temos que buscar a água de longe”. A seca, que impõe uma dieta restrita, está fazendo os animais adoecerem por falta de cálcio. “Falta verde para elas comerem”. A falta d’água também é a principal queixa de Elizabete Damascena dos Santos, moradora da VPR Pilões, em Verdejante/PE. “A gente só planta quando chove. Criamos dez cabeças de gado. Quando tá seca, temos que comprar o ‘pasto’ fora”.

Pouca água

A falta d’água é o problema central para os moradores das dezoito Vilas Produtivas Rurais. Valdirene Bernardino dos Santos, 44 anos, mora desde dezembro de 2010 na VPR Uri, em Salgueiro/PE. Depois de quase dez anos de espera, ela sintetiza o sentimento das pessoas que tiveram suas vidas afetadas pelas obras da transposição: “O grande gargalo é a água. Hoje mal tem água para beber”.

A situação que ela conta em Uri, não difere muitos das outras vilas. “No início éramos abastecidos por carro-pipa, que jogava a água na caixa d’água. Há três anos começou a passar para a Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento). Mesmo assim, só chega água a cada oito dias e por poucas horas. Só dá tempo de encher a cisterna”. Na VPR Negreiros, vizinha de Uri, a situação é ainda pior. As 26 famílias que moram lá esperam até 15 dias para terem água na torneira. Para Maria Letícia da Silva, que foi morar na vila em novembro de 2010, até agora, tudo foi “só promessa”.

De todas as vilas, a de Malícia, também em Salgueiro, era a que tinha a pior situação hídrica. Quando a reportagem da Marco Zero visitou a VPR, os moradores já estavam há 22 dias sem receber água. Segundo Damião Vieira dos Santos, 43 anos, que mora na vila desde dezembro de 2014, ele e os vizinhos têm que recorrer aos carros pipas que custam, em média, R$ 120. “Estamos reivindicando à prefeitura cavar um poço, mas até agora nada”.

A falta de água para plantar, manter os animais ou, em alguns casos, até para abastecer a casa, vem acompanhada de uma sensação de impaciência e até revolta. Mesmo com boa parte dos canais, reservatórios e açudes cheios, ninguém recebeu ainda os lotes irrigados e nem pode usar a água por conta própria. É terminantemente proibido o uso da água dos canais e reservatórios da transposição para consumo (humano, animal ou para agricultura), pesca ou mesmo recreação.

O caso dos moradores da VPR Junco é emblemático. “A área destinada para nós plantarmos está a 200 metros da barragem do Livramento, que foi entregue em 2017 por Michel Temer. Nós estamos assentados há dez anos e, mesmo estando tão próximos do canal, a gente ainda não recebeu a água. Mais de dois anos depois de entregue a barragem a gente ainda não tem água para trabalhar”, desabafa Webston Parente Gonçalves, 30 anos, que vive desde 2010 em Junco e atualmente é presidente da associação de moradores da vila.

Obra sem fim

Para Valdirene, o grande atraso na conclusão da transposição é a origem de todos os problemas. “A realidade foi totalmente diferente do que foi prometido. Até hoje a gente espera”. As obras começaram em 4 de junho 2007. Pelo cronograma inicial, era para ficar pronta em 2012. Depois foi remarcada para 2016 e, hoje, na melhor das hipóteses ficará pronta em 2021. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, 97,44% de execução física do Eixo Norte já foram entregues. No Eixo Leste, a água já chegou ao destino final, em Monteiro/PB, faltando a correção de alguns problemas estruturais e obras complementares para possibilitar o tratamento e a distribuição da água para a população.

O Programa de Reassentamento das Populações (PB08) assegura que, em última instância, o objetivo do projeto ao fazer os remanejamentos para as VPRs seria “promover a melhoria da qualidade de vida das famílias ou, no mínimo, garantir as condições para sua reprodução social e econômica em situação similar à anterior”.

Para isso, segundo o documento, estaria garantido:

  • Titularidade de lotes produtivos e/ou residências, e a preservação dos laços de parentesco e/ou de vizinhança nos locais de reassentamento rural coletivo
  • Infraestrutura básica de abastecimento de água, sistema sanitário e eletricidade
  • Infraestrutura social (escola, posto de saúde e centro comunitário)
  • Acesso aos serviços sociais de educação e saúde, através da articulação com os setores governamentais competentes
  • Infraestrutura de apoio à produção
  • Capacitações voltadas para temas que tratam, entre outros assuntos, de questões ambientais como manejo do lixo, manejo e conservação de solos, uso racional dos recursos hídricos, preservação e conservação das áreas protegidas pela legislação
  • ambiental e questões relativas à convivência comunitária
  • Assistência técnica para a retomada das atividades produtivas

Perda da identidade

O atraso nas obras e a consequente demora para a entrega dos lotes irrigados têm contribuído para um outro problema: a desconstrução do modo de produção familiar e a perda da identidade camponesa. “Com a demora houve o afastamento das pessoas da agricultura. Estamos perdendo o vínculo com a terra”, relata Valdirene dos Santos. Ela, que desde criança trabalha com a terra, nos últimos dez anos tem se limitado a plantar no quintal de casa ou manter uma roça de subsistência nos raros períodos de chuva.

Sem os terrenos irrigados, muitos moradores das VPRs, ao longo da última década, foram trilhando outros caminhos. Webston Gonçalves é um exemplo. “Cresci trabalhando com a terra, seguindo os passos do meu pai”, faz questão de lembrar. Mas, em 2014, passou em um concurso para professor do município de Cabrobó/PE e, até hoje, dá aula de matemática na própria escola da vila de Junco, a poucos metros de casa.

Concurso público também foi o caminho seguido por Maria Lívia, moradora da VPR Vassouras. Há nove meses ela foi aprovada em uma seleção feita pela prefeitura de Brejo Santo/CE e atua como agente de saúde no posto da vila onde mora. Mas trabalhar em um emprego público, estável e perto de casa é exceção. A maioria foi buscar trabalho nas cidades próximas, principalmente no comércio. Zé Ribeiro sintetizou em uma frase o que ele acha dos vizinhos depois de dez anos longe da roça: “Hoje ninguém mais sabe plantar cebola”.

O agro não é pop

Mas as dificuldades, claro, não se restringem aos problemas de adaptação a um novo estilo de vida ou à espera da água. Quem deseja trabalhar na terra tem enfrentado problemas concretos para se manter. Para Manuel Joaquim, 65 anos, há quase dez anos morando na VPR Pilões, o custo da produção em um terreno pequeno e de pouca qualidade é uma equação que não fecha. “Essa água vai custar caro. Não tem como se sustentar em um terreno pedregoso”. Ele lembra que antes, quando morava a dois quilômetros, atrás do açude de Pilões, na Baixa do Riacho, também no município de Verdejante/PE, tinha água o ano inteiro. “Nunca parei de insistir. Eu gosto da terra. Mas é muito difícil a vida aqui. Antes tinha muitas fruteiras. Aqui só tem pedras. As terras são poucas”.

O prejuízo que Manuel Joaquim está prevendo, Francisco Fágner já sentiu no bolso. Fágner tem 28 anos e mora com a mulher Maiara Gomes (25), desde dezembro de 2016, na VPR Descanso, no município de Mauriti/CE. Depois de trabalhar por cinco anos nas obras da transposição e ser demitido, ele resolveu investir em agricultura.

A exemplo do que fazia quando vivia no distrito de Uburama, que fica a dois quilômetros da casa atual, resolveu plantar feijão. “Gastei R$ 600 de energia para bombear a água. Isso sem contar o trabalho e o custo das sementes. No fim, deu dois sacos de 60 quilos e arrecadei R$ 400”, lamenta. A ideia dele agora é plantar milho. “O quilo da semente custa R$ 36, mais ou menos. Quando colher, vou vender o quilo por R$ 0,80”.

Ao juntar os demais custos de produção até a colheita, as chances de um novo prejuízo na empreitada de Fágner são grandes. Por isso, a esposa Maiara prefere investir em algo mais garantido. Para complementar a renda familiar, o casal abriu uma pequena mercearia na frente da residência: “Quando chegamos e vimos esse tanto de casa (80) percebemos a oportunidade”.

A vida fora da vila

O Programa de Reassentamento das Populações previa a entrega de uma escola e um posto de saúde para cada vila. Nesse ponto o PBA08 foi cumprido, já que as dezoito VPRs receberam a estrutura física dos dois equipamentos. O problema foi na hora de colocá-los para funcionar, o que seria responsabilidade dos municípios. São poucas as vilas que têm, pelo menos, um deles funcionando, como foi prometido na hora das negociações, o que obriga os moradores a procurarem atendimento médico ou colocarem os filhos para estudarem nos núcleos urbanos mais próximos.

Descanso é uma das maiores VPRs com 80 casas. Mesmo assim, a escola e o posto de saúde não funcionam. Para Maiara Gomes, esse é o maior problema da vila no momento. “Esse negócio de escola tá péssimo. Tem que ir para Palestina, que fica a uns seis quilômetros. O ônibus sai às 11h40 e volta entre 18h30, 19h. O posto de saúde só funcionou no primeiro ano. Somos atendidos no Sítio Quixabinha, que fica a oito quilômetros.”

Ipê é a menor VPR com apenas dez casas. Francisco Félix de Souza, 59 anos, mora em uma delas. Em 2016, quando foi reassentado, poderia ter escolhido a VPR de Vassouras, mas optou por um lugar menor e mais perto da “cidade”. O tamanho e a localização da vila colaboraram para que escola e posto de saúde nunca tenham funcionado. “Escola e posto são os da rua”, conta Francisco, explicando que “a rua” é a sede do município de Jati/CE, a cerca de 1,5 quilômetro de distância.

Manter as escolas em pleno funcionamento envolve orçamento, logística e proporção que não se adequam à realidade das prefeituras. Mesmo as maiores vilas, como no caso de Descanso, não têm crianças suficientes para justificar a estrutura necessária para manter as turmas do ensino fundamental. De maneira geral, os municípios também oferecem transporte escolar para os casos de deslocamentos mais longos, possibilidade prevista no programa de reassentamento.

Jogo de empurra

Além das questões envolvendo o atendimento de saúde e educação, o fornecimento de água para as casas, que é responsabilidade das companhias de abastecimento dos estados, tem sido uma dor de cabeça para os moradores da VPR Malícia. Localizada em Salgueiro/PE, a vila está a menos de dois quilômetros de Penaforte/CE. Como a sede do município pernambucano está a cerca de 40 quilômetros, a dinâmica social da vila acaba girando em torno da cidade cearense. “Nós estamos com um impasse político. Fomos assentados em uma VPR que fica na divisa”, explica Francisco Vieira Filho, 50 anos e morador da vila desde dezembro de 2014.

Um exemplo das distorções causadas pela “bola dividida” na administração do dia a dia de Malícia é o fornecimento de água ser feito pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece). Do ponto de vista da logística, faz todo sentido. Mas, na hora de resolver pendências, cobrar um melhor serviço ou receber algum investimento a situação se complica e a burocracia toma o lugar do bom senso.

Marinalva Bezerra, 48 anos, presidenta da Associação dos Moradores da VPR Queimada Grande, sente cotidianamente a dificuldade para atender às demandas da comunidade onde vive desde dezembro de 2014. Para ela, o resultado do jogo de empurra entre as esferas da administração pública é que nada acaba sendo resolvido. “Somos esquecidos pelos governos municipais e estaduais.”

Quem tinha direito ao reassentamento

  • As famílias proprietárias e não proprietárias residentes na área afetada
  • As famílias proprietárias e não proprietárias incluídas no Cadastro Socioeconômico concluído em dezembro de 2004
  • As famílias proprietárias e não proprietárias que têm como principal fonte de renda a atividade agropecuária
  • As famílias proprietárias sem áreas remanescentes, que adquiriram a propriedade antes do Cadastro Socioeconômico, e que têm direito à indenização pelas terras e benfeitorias com um valor máximo de R$ 30.000,00 (trinta mil reais)
  • Os proprietários de benfeitorias afetadas com direito à indenização com valor máximo de R$ 30.000,00 (trinta mil reais)

As famílias em situação de risco social, consideradas como tais as famílias compostas exclusivamente por pessoas idosas, por mulheres chefe de família com filhos menores de 15 anos solteiros, além dos portadores de deficiência física ou mental, fatores que limitam ou impossibilitam a inserção produtiva

Quem teve a propriedade afetada pelas obras da transposição poderia escolher receber uma indenização pelas terras e benfeitorias ou ser remanejado para uma das dezoito Vilas Produtivas Rurais. De maneira geral, quem tinha propriedades maiores preferiu receber o dinheiro e mudar para áreas não afetadas da propriedade ou tocar a vida em outro lugar. As que aceitaram ir para as vilas, em sua maioria, eram as mais vulneráveis.

Muitas das famílias que hoje estão nas VPRs sequer eram proprietárias. Quase 70% eram meeiras (que dividiam a produção com os proprietários da terra) ou posseiras (ocupam as terras sem as respectivas escrituras) e, segundo diagnóstico feito pelos técnicos do Ministério do Desenvolvimento Regional no documento PBA08, “apresentam alta vulnerabilidade diante de processos de mudança em função da baixa escolaridade e capacitação profissional e do tênue vínculo com o mercado”.

Lucimar Araújo Pereira encaixa-se nesse perfil. Desde março de 2016 mora na VPR Cacaré, em São José de Piranhas/PB. Até se mudar, “trabalhava de meeira plantando feijão e milho”. Queixa-se de promessas que ainda não foram cumpridas e de ter que pagar R$ 58,50 pela água na torneira de casa. Mas não se arrepende da mudança. “Minha vida melhorou porque antes era metade (da produção) pra gente e metade pro patrão (dono da terra). A gente morava de favor. Agora a gente tem a liberdade de dizer que tá morando em cima do que é da gente”.

A força do coletivo

Dois exemplos, nos extremos do mapa da transposição do Rio São Francisco e a mais de 300 quilômetros um do outro, mostram que o melhor caminho para enfrentar os problemas causados pelo atraso das obras e a consequente escassez de água é o trabalho coletivo. Moradores das Vilas Produtivas Rurais Captação, em Cabrobó/PE, e Lafayette, em Monteiro/PB, não esperaram sentados que prefeituras, órgãos estaduais ou federais cumprissem as obrigações assumidas. Se organizaram para cobrar as promessas feitas e, principalmente, para produzir.

Captação fica nas margens do Rio São Francisco. É a primeira vila do Eixo Norte da transposição e, como o nome indica, fica bem próxima de onde a água é captada. Apesar da proximidade do rio e de ter sido umas das primeiras a serem ocupadas, ainda em 2010, os terrenos irrigados não foram entregues aos novos proprietários. Ainda havia outro problema. Os lotes reservados para produção eram menores do que o previsto. “Quando mediram a área para demarcar os terrenos que seriam irrigados só sobrou 1,65 hectare para cada um, quando o combinado eram dois”, lembra Rivaldo Manoel Novais, 56 anos.

Os lotes com o tamanho reduzido teriam sido entregues normalmente se os proprietários não fossem negociar com os representantes do Ministério do Desenvolvimento Regional. Os moradores não só pressionaram como apresentaram a solução para o problema. No final, houve uma inversão das áreas onde seriam implantados os lotes de sequeiro com a área dos irrigados, garantindo os dois hectares pactuados anteriormente.

A troca do local dos lotes também possibilitou que os terrenos de sequeiro ficassem próximos do Rio São Francisco (o lote de Rivaldo, por exemplo, fica a 270 metros). Foi aí que surgiu a ideia de criar uma associação entre os moradores para implantar um sistema de irrigação próprio, aproveitando a proximidade do rio. “No começo a gente foi conversando com as pessoas. Tinha gente que não queria. Era um trabalho de convencimento. Até que chegou a hora que a gente disse: ‘vai ter que irrigar’. Aí a gente foi comprando cano, bomba, transformador. Era tudo dividido igualmente com todos”, lembra Rivaldo.

Treze dos dezessete proprietários aceitaram participar da associação. Há cerca de três anos, com a água trazida do São Francisco, começaram a produzir e aumentar a renda familiar. Cada sócio paga R$ 15 por mês, com as eventuais despesas extras para investimentos sendo rateadas igualmente. “A gente já recebeu as casas há quase dez anos e só estamos produzindo porque a gente se juntou e fez com recursos próprios. Essas estradas aqui, a drenagem, foi tudo a gente que fez através da associação”, mostra Rivaldo com orgulho.

O exemplo de Lafayette

A VPR Lafayette está localizada no final do Eixo Leste, no município de Monteiro/PB. Inaugurada em março de 2016, está no grupo das últimas vilas a serem entregues e, possivelmente será uma das primeiras a receber os lotes irrigados. Isso porque o Eixo Leste, apesar de algumas interrupções por problemas estruturais, já está em pré-operação. Mas, mesmo antes da água chegar e dos inúmeros problemas comuns às outras vilas, boa parte dos moradores começou a produzir de forma consistente e articulada.

Agnaldo Freitas da Silva, 44 anos, é o presidente da Associação de Moradores de Lafayette e também um agricultor inquieto, que vive procurando ideias, parcerias e apoio para projetos que ajudem a melhorar a sua produção. Sua e dos vizinhos. Segundo Agnaldo, o sucesso da vila em relação à maioria das outras do projeto de transposição deve-se à combinação de organização entre os moradores com a busca pela capacitação técnica para produzir com mais eficiência e menos recursos. São muitos exemplos nestes pouco mais de quatro anos, envolvendo parcerias com órgãos públicos, universidades e organizações não governamentais.

Além de ter organização, é preciso ter persistência. Um exemplo disso foi o processo para colocar água nas torneiras das casas da vila. “Aqui, tivemos todo processo com a água. Começamos com o poço, mas era imprópria para o consumo, já que tinha muito sódio. Paramos o poço e acionamos o ministério que passou a fornecer carro-pipa por mais de um ano. Depois, conseguimos a Cagepa (Companhia de Água e Esgoto da Paraíba) que opera até hoje aqui dentro. A gente teve até que entrar com ação na Justiça Federal”, lembra Agnaldo. Tanta luta mostrou também a necessidade do uso consciente da água. “Fizemos capacitação com a comunidade. Mostramos que não era para a plantação ou consumo dos animais”.

Desde cedo, os moradores de Lafayette perceberam que precisavam agregar valor ao que produzissem. Assim, poderiam compensar o custo relativamente alto da água e as condições do terreno nem sempre tão favoráveis. Perceberam também que o trabalho conjunto e a capacitação técnica era o melhor caminho. Foi assim, por exemplo, com a produção de algodão agroecológico ano passado. Vale lembrar que a Paraíba já foi um importante centro produtor de algodão até a praga do bicudo por volta dos anos 1980.

Luciano dos Santos, 43 anos, foi um dos 29 moradores da vila que começaram o projeto. Depois de passar por uma capacitação de seis módulos com técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), os produtores começaram a preparar o terreno, com uma série de cuidados e procedimentos para que o “selo” de agroecológico fosse garantido. Luciano lembra que na época dos pais dele plantavam o algodão Mocó mas, depois da capacitação, eles resolveram plantar o Aroeira. “Tem boa produtividade e é mais resistente às pragas”.

O trabalho, segundo Luciano, foi duro. Dos 29 produtores que começaram, apenas quatorze chegaram ao final do processo. O cultivo rendeu cerca de uma tonelada de plumas, vendidas à Veja Fair Trade, marca francesa de tênis sustentáveis, por R$ 11,50 o quilo. As negociações foram feitas com o apoio da Associação de Certificação Participativa dos Produtores Agroecológicos do Cariri Paraibano (ACEPAC) e em parceria com o Instituto C&A. “No individual é muito difícil. Com a associação podemos buscar a venda direta e conseguir melhores preços”, explica.

Em onze casas da vila, tanques de concreto no quintal chamam a atenção. A estrutura, construída em parceria com o Sebrae, é mais uma aposta dos moradores. Em cada tanque de 14 mil litros, são dois por propriedade que participa do projeto, estão cerca de mil tilápias. Para conseguir tantos peixes em um espaço tão restrito, os moradores tiveram orientação de profissionais da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que tem um convênio com o Ministério do Desenvolvimento para realizar capacitações nas dezoito vilas.

Além do algodão e dos peixes, vários outros projetos foram ou estão sendo executados na vila Lafayette. Apicultura (eram 200 colmeias de abelhas nativas), milho hidropônico, curso de hortaliças e criação de aves, perfuração de poços (11 ao todo) e plantação de palma (renderam 440 mil raquetes em 2019) só para citar os mais relevantes. “Aos poucos estamos desenvolvendo nosso potencial. São essas parcerias que vão abrindo caminho”, comemora Agnaldo.

A organização para a produção agrícola também ajuda na mobilização para trazer benefícios para a comunidade. Em Lafayette o posto de saúde funciona e a escola oferece cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A estrutura física da escola também é usada para cursos de capacitação e oficinas dos mais variados tipos, desde fabricação de doces a aulas de dança.

Claro que ainda existem muitos problemas a serem resolvidos e nem todas as pessoas da comunidade estão envolvidas nesse processo. Lafayette é bem heterogênea, o que dificultou e, de certa forma, limitou a organização. Das 61 famílias iniciais, dezenove vieram da zona urbana de Monteiro, sem afinidade com a agricultura. Outras dezoito famílias vieram de localidades de Pernambuco, fato que não ajudou na integração no primeiro momento. Isso, porém, não impede Agnaldo de pensar em ampliar o trabalho coletivo. “Nossa ideia é fazer uma cooperativa. Mas isso só será possível quando os lotes irrigados forem entregues”.

Segundo Leonardo Cavalcanti, coordenador das ações do PBA08 na Universidade Federal do Vale do São Francisco, a ideia da universidade também é incentivar a criação de cooperativas. “Reuniríamos as VPRs de Pernambuco e criaríamos uma cooperativa, o mesmo com as vilas do Ceará e da Paraíba. Assim, elas poderiam comprar e comercializar em melhores condições”, explica.

Em 2019, a Univasf realizou 69 capacitações nas dezoito VPRs. Os cursos de Formação de representantes e Organização Socioprodutiva aconteceram em todas as vilas. Outros, como Irrigação, Beneficiamento de Frutas, Quintal Produtivo, Produção de Forragens, Horta Agroecológica, Criação de Galinhas Caipiras e Piscicultura foram aplicados conforme a necessidade de cada comunidade. Ao todo, foram 1.075 participantes.

As capacitações fazem parte do PBA08 e, através de um convênio com o Ministério do Desenvolvimento Regional, envolvem professores e pesquisadores de diferentes cursos da Univasf e também de colaboradores terceirizados e estudantes. Segundo Leonardo Cavalcanti, em 2019 houve uma mudança de foco na realização das capacitações. “A escolha dos cursos foi feita com a participação das vilas, abordando temas de interesse e da realidade de cada uma”.

Onde tudo se aproveita

Josué Raimundo dos Santos mora, com a mulher Maricleide e os dois filhos, em uma das trinta propriedades da VPR Retiro, no município de Penaforte/CE. Desde que chegou lá, em 5 de agosto de 2015, ele tem uma preocupação: como se manter depois que o auxílio do governo acabar.

Aqui cabe uma explicação. O que ele chama de “auxílio” está previsto no plano estratégico de implementação do Programa de Reassentamento de Populações, que estabelece uma ajuda técnica para a produção (começou com 1,5 salário-mínimo e, em 2017, foi reduzido para um) até a entrega dos terrenos irrigados, com uma carência de seis meses até a primeira colheita.

O “auxílio”, que garante a sobrevivência das famílias enquanto esperam pelos lotes irrigados, na opinião de Josué pode ser uma armadilha. Ele vê com preocupação muitos vizinhos que vivem exclusivamente do “dinheiro do governo” e não buscam alternativas para o futuro. “Um dia vai acabar e quem não tiver começado a plantar vai ter dificuldades”, prevê. A questão levantada por Josué é um problema que afeta os moradores de todas as dezoito vilas produtivas rurais.

A solução de Josué para fugir da armadilha foi buscar capacitação técnica e ideias criativas para conviver com a escassez de água. Participou das capacitações da Univasf, procurou ideias na internet com a ajuda do filho e, aos poucos, foi criando um sistema integrado em seu quintal, onde tudo se aproveita.

O primeiro desafio, claro, é a água. Em Retiro tem um poço com capacidade para 28 mil litros/hora que é administrado pela própria comunidade. Rivaldo paga R$ 14,50 por 10 mil litros de água que usa para irrigar o que planta no quintal e para o consumo da casa. Planeja ter o próprio poço que, a longo prazo, representaria uma economia. Mas já fez as contas e, para perfurar, gastaria algo em torno de R$ 20 mil, mas uns R$ 300 mensais de energia para bombear a água. Ainda não dá.

Para minimizar os custos, Josué e a família reaproveitam a água do banho. O sistema faz parte de um projeto da Univasf e utiliza a água que seria jogada fora para irrigar a plantação de palma e milho no quintal da casa. O sistema é simples e engenhoso, podendo ser implantado com baixo custo.

Com a água do poço a família de Josué vive uma situação bem diferente do que estava acostumada na antiga casa, em Quixaba, distrito de Salgueiro/PE. “A gente precisava andar uns oito quilômetros. Pegava um jumentinho, colocava uma cangaia e ia no açude pegar a água”, lembra. “A gente só vive através da água”.

A água está no centro de todos os outros pequenos projetos que Josué desenvolve no quintal de casa, uma área de meio hectare. Também com o apoio da Univasf, ele cultivou milho hidropônico que serviu para a alimentação das galinhas, porcos e gado que cria para subsistência. O gado também se alimenta da palma produzida com o aproveitamento da água do banho.

Josué também está apostando na criação de peixes. Em uma caixa d’água de 500 litros ele cria cerca de 100 carpas e tilápias. Para oxigenar a água, ele utiliza um motor adaptado de uma máquina de lavar roupas. Os peixes chegam a pesar entre 300 e 400 gramas. Com ajuda dos filhos já cavou no fundo do quintal um barreiro com capacidade para mais de mil peixes. Josué imagina que a piscicultura possa ser um negócio bem rentável.

“Nós vamos buscando mais, inventando os projetos, até chegar água”. Josué explica que os projetos servem de teste para saber o que é mais viável economicamente para desenvolver em uma escala maior quando receber os lotes irrigados.

Uma fenda escavada no chão

O Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional é uma obra no superlativo. O tamanho, os recursos envolvidos, a quantidade de pessoas beneficiadas, os impactos sociais e ambientais, tudo tem dimensões grandiosas na maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil. Quando estiver pronta, a previsão é que beneficie 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Somando os dois eixos – Norte e Leste – são 477 quilômetros de canais. O Eixo Norte (260 quilômetros) começa no município de Cabrobó/PE e se estende até Cajazeiras/PB, cortando doze municípios. Já o Leste (217 quilômetros) tem a captação feita em Floresta/PE e termina em Monteiro/PB, passando por cinco municípios. O projeto prevê a captação de apenas 1,4% da vazão de 1.850 m³/s do São Francisco.

A água transposta pelo Eixo Leste, que se encontra em pré-operação, já beneficia mais de um milhão de pessoas nos estados de Pernambuco e Paraíba, desde 2017. São 46 municípios dos dois estados, incluindo a Região Metropolitana de Campina Grande, segunda cidade mais populosa da Paraíba. Já no Eixo Norte, a água chegou em agosto ao Cinturão das Águas do Ceará (CAC), que abastecerá 4,5 milhões de pessoas na Região Metropolitana de Fortaleza.
Iniciada em 4 de julho de 2007, a obra já vai com quase oito anos de atraso. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 98% de execução física do Eixo Norte já foram entregues e o Eixo Leste já está em pré-operação. Com o orçamento inicial de R$ 4,5 bilhões, já foram gastos mais de R$ 12 bilhões.

Os dois eixos englobam

  • 3 aquedutos
  • 9 estações de bombeamento
  • 27 reservatórios
  • 9 subestações de 230 quilowatts,
  • 270 quilômetros de linhas de transmissão em alta tensão
  • 4 túneis

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, atualmente o projeto conta com mais de 5,4 mil trabalhadores atuando nos dois eixos de transferência de água.

Linha do tempo

  • 1847 – Marcos Antônio de Macedo, intendente da comarca do Crato, no Ceará, propõe ao imperador Dom Pedro II trazer água do São Francisco para o seu estado.
  • 1879 – Depois da Grande Seca, de 1877 a 1879, a transposição volta a ser cogitada, mas estudos feitos pelo Barão de Capanema demonstraram não haver recursos técnicos para a obra.
  • Agosto de 1994 – O então presidente Itamar Franco decreta ser de interesse da União estudos sobre o potencial hídrico das bacias das regiões semiáridas dos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
  • 5 de junho de 2001 – Criados o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) e o Projeto de Conservação e Revitalização da Bacia Hidrográfica do São Francisco (PCRBHSF).
  • Julho de 2004 – Apresentados o Estudos de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental. O Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco é aprovado pelo CBHSF.
  • 4 de junho de 2007 – Começam as obras da transposição.
  • Maio de 2010 – Inaugurada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Junco (Baixio dos Grandes) recebe 83 famílias e é a primeira vila produtiva rural a funcionar.
  • Março de 2016 – Moradores se mudam para Lafayette, em Monteiro/PB, última das dezoito vilas produtivas rurais a ser ocupada.
  • 10 de março de 2017 – O ex-presidente Michel Temer inaugura o trecho leste, em Monteiro (PB).
  • 19 de março de 2017 – Os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff fazem a inauguração popular da transposição do rio São Francisco.
  • 26 de junho de 2020 – Águas do São Francisco chegam ao Ceará, através do Eixo Norte, e começam a encher o reservatório de Jati/CE.

Uma época que não existe mais

Se tudo tivesse dado certo, a Vila Produtiva Rural Queimada Grande, em Salgueiro/PE, seria um pedaço de terra cercada de prosperidade por todos os lados. A VPR, entregue aos moradores em dezembro de 2014, fica em um terreno delimitado pelo canal da Transposição do São Francisco, de um lado, e pelos trilhos da Ferrovia Transnordestina, do outro. Duas megaobras impulsionadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e que eram o símbolo de um Brasil que crescia “como a China”. A Transnordestina, a maior obra linear do país, começou em 2006. Um ano depois, iniciava-se a Transposição. Quase quinze anos depois, nenhuma das duas foi concluída.

No caminho de pouco mais de um quilômetro entre a BR-116 e o portal de entrada de Queimada Grande é possível ver vagões abandonados nos trilhos cobertos de mato, indicando que a obra está parada já há algum tempo. Desde 2013, na esteira dos problemas causados pela operação Lava Jato e por uma série de entraves burocráticos, o ritmo das máquinas foi diminuindo e, desde 2017, parou de vez.

Uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2017, suspendeu a liberação de recursos públicos para o projeto até que a Transnordestina Logística S/A (TLSA) apresente à Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT cronograma e orçamento factíveis. A Transnordestina, que tinha um orçamento inicial de R$ 4,5 bilhões, ao longo dos anos teve o valor aumentado e chegou aos R$ 7,5 bilhões.

Enquanto as obras não retomam e a água não chega para irrigar seus lotes, os moradores de Queimada Grande se acostumaram a ver o pontilhão de trilhos enferrujados que cruza o canal seco às margens da BR-116 como o símbolo de um sonho interrompido no caminho, de um país que não existe mais.

Diário de viagem: A história por trás da história

A expectativa de percorrer dezoito vilas produtivas rurais em pouco tempo era grande. Conhecer o mundo através de histórias de vida de pessoas simples é uma das coisas que mais me encanta no jornalismo.

Sempre tive uma ligação forte com o interior, influência familiar. Nasci em Garanhuns, mas cresci no Recife. Apesar disso, brinco dizendo que saí de lá com 30 dias, mas Garanhuns nunca saiu de mim. Daí meu primeiro afeto por lugares pequenos, onde todo mundo conhece todo mundo e vizinhos carregam como “sobrenome” ser filho de alguém – Maria de seu João de Barros.

São de lugares simples que carrego as melhores experiências e exemplos. Graças ao jornalismo, já percorri muitas estradas rumo ao interior, principalmente de Pernambuco.

O chão laranja de terra batida e muita pedra mostrou de cara o que já esperava. O sol a pino, o céu especialmente azul e riscado por nuvens me lembrou de quando era criança e via histórias desenhadas, e foi revelando pouco a pouco a vida sofrida daquelas pessoas que ia conhecer.

Foi um calor escaldante, vi pela primeira vez na vida o termômetro do carro bacana em que viajamos marcar 44°, o que deu mote para começar muitas conversas nos oito dias em que nos aventuramos, eu e Sérgio, por caminhos que muitas vezes nem o GPS mostrava.

As vilas seguem o mesmo padrão. Casas, posto de saúde, escola, campo de futebol, sede de associação comunitária contornam o terreno que mais parece um tabuleiro de Banco Imobiliário, mas sem o bairro do Morumbi. Quase sempre no meio do nada. Seja em Pernambuco ou Ceará, o modelo é o mesmo. É sobre vidas independentes que foram colocadas nesse tabuleiro que quero falar.

A grandiosidade da obra que via de perto, do começo ao fim, carregava, pra mim, o peso de tantas mudanças que até hoje confundem os sentimentos. Era a água sonhada que poderá irrigar terras e acabar com as manchetes de seca do meu Nordeste, mas também uma mudança da vida de tanta gente.

Ouvi de um cidadão, seu Zé Ribeiro, que vivera 60 dos seus 84 anos de vida num pedacinho de terra e que agora está numa “casa boa” mas sem vida, sem um pé de pau pra sentar à sombra no fim do dia, sem o rio pra tomar banho, porque as vilas na maioria das vezes estão distantes quilômetros do rio. Penso sobre isso até hoje.

Quando só se conhece um pedaço de terra que lhe é “tirado”, é difícil retomar a vida mesmo com outros tantos suportes oferecidos pelo projeto. Isso me faz ter dúvidas. E se fosse comigo? Se meu mundinho fosse virado de ponta cabeça, como estaria?

Mas essa foi só uma parada. Foi uma história entre tantas. Conhecer uma mulher que se tornou líder comunitária em sua vila também traz reflexões. Vê-la superar dificuldades de uma vida como “meeira”, vencer o machismo muito presente no interior, encheu o coração de esperança de que, quem sabe, um dia a água vai chegar para aquelas pessoas e vai de fato mudar vidas.

A dinâmica de vida de quem vive em um sítio, apenas tendo como vizinhos seus parentes, é bem diferente da forma de vida de uma vila. No campo a vida é livre, na vila é seca. Seca por natureza. Seca de chão de pedra. Seca pelo sol que castiga de verdade. E, agora, ter ao redor pessoas novas, com demandas e costumes diferentes, é muito complexo.

Ao mesmo tempo, enxergar o potencial da coletividade, literalmente, em forma de cooperativas, é de encher os olhos! Ver de perto um barreiro cavado com as mãos de uma família para criação experimental de tilápias é entender tantos potenciais apagados até então. Esfrega na cara de quem não acredita que dias melhores podem estar por vir.

São tantos exemplos que é impossível listar em poucas linhas, é pretensioso demais resumir aquelas vidas nas minhas palavras.

Entender um pouquinho sobre a maior obra para o povo já vista nesse velho Brasil é revigorante. Faz até os mais incrédulos imaginarem que pode ser diferente e que, se depender daqueles sertanejos, o Brasil pode se curar de tantas feridas.

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